Por Natalina Ribeiro
Governo decidiu extinguir com uma canetada a complexa rede de instâncias participativas criadas há pelo menos três décadas.
A experiência participativa brasileira tem inspirado iniciativas semelhantes em diversos países: "democratizam a democracia". Foto: Flickr CNS |
O Decreto nº 9759/2019, anunciado em 11 de abril, extingue e limita o funcionamento de centenas de colegiados nacionais com participação social. O governo não sabe ao certo quantos são os colegiados existentes, quanto recurso público irá economizar ou desperdiçar, quais áreas serão atingidas ou o impacto da extinção para a gestão das políticas públicas. Mesmo assim, sem qualquer estudo prévio, decidiu extinguir com uma canetada a complexa rede de instâncias participativas criadas há pelo menos três décadas.
Sob a justificativa do número excessivo de colegiados existentes, o ministro-chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni alega que a redução irá tornar a máquina pública mais eficiente. No entanto, na ocasião em que o decreto foi publicado, não apresentou qualquer levantamento quantitativo ou qualitativo acerca dos colegiados existentes e das funções que desempenham.
O direito à participação, inscrito na Constituição de 1988 e presente nas regulamentações de artigos específicos, como a Lei Orgânica da Saúde (LOS/1990), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990), a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS/1993), o Estatuto da Cidade/2001, dentre outros, ganhou materialidade na criação de canais institucionais de participação amplamente implementados nas três esferas de governo. Os conselhos são os mais conhecidos e, com frequência, foram criados por leis ou decretos que também regulamentam a realização de conferências e a elaboração de planos indicativos dos compromissos da gestão pública com as políticas sociais.
Apesar da ampla adesão e da (quase) unanimidade do discurso de apoio à democracia e aos canais de participação por toda a década de 1990, já durante o processo constituinte e ao longo do período de implantação dos conselhos foram constantes as manifestações de oposição às iniciativas que promoveram a participação da sociedade em assuntos de interesse público. No final da década de 1980, a proposta de criação de conselhos populares defendida pelo Partido dos Trabalhadores foi objeto de intensos ataques na grande imprensa.
As matérias publicadas comparavam os conselhos populares aos “soviets”, para ilustrar a ameaça comunista contra a democracia, em estreita sintonia com a propaganda ideológica típica da Guerra Fria. Os discursos raivosos foram repetidos duas décadas após, por ocasião da aprovação do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH3/2009), com versões atualizadas dos mesmos argumentos. Os ânimos também se inflamaram novamente em 2014, em reação ao decreto da presidenta Dilma criando o Sistema e a Política Nacional de Participação Social. Esses poucos exemplos permitem relembrar como o direito à participação sempre gerou mal-estar nos setores mais conservadores.
A repulsa à democracia e à participação está sintetizada no Decreto nº 9759/2019, anunciado num contexto político de retrocessos de direitos conquistados e em forte contraposição à cultura participativa fomentada desde a Constituição de 1988. Os conselhos e demais canais de participação, nacionais, estaduais e municipais, abriram importantes espaços de escuta e diálogo sobre as pautas de direitos sociais, dando voz a cidadãs e cidadãos e a organizações da sociedade civil que atuam no campo da defesa de direitos. Além de ampliar o direito à participação prevista nos processos eleitorais, os conselhos imprimiram avanços significativos na perspectiva da democratização do Estado, do direito à transparência, à informação e ao controle social. Trata-se de conquista dos movimentos sociais e da sociedade brasileira em uma longa trajetória de lutas pelo direito a participar da tomada de decisões nos processos de formulação e acompanhamento da execução das políticas públicas.
Há uma extensa produção de pesquisas e estudos sobre a democracia participativa no Brasil que reconhecem o alcance de melhores resultados na implementação de políticas públicas quando resultantes do diálogo entre o governo e a sociedade civil. Sem desconhecer os limites e fragilidades nas dinâmicas de participação institucional, apontam a necessidade de aperfeiçoar e fortalecer os processos participativos, mas não de extingui-los.
Reconhecida no cenário internacional por seu potencial de contribuir para a democratização do Estado e a concretização do direito humano à participação, a experiência participativa brasileira tem inspirado iniciativas semelhantes em diversos países. Nas palavras de Boaventura de Souza Santos, são experiências que “democratizam a democracia”.
O que o atual governo está fazendo é exatamente o oposto ao extinguir ou enquadrar os colegiados a uma perspectiva burocrática de participação controlada.
A recente trajetória de construção democrática no país está sob ataque das incontáveis iniciativas do governo, em sua saga contra o Estado democrático de direito explicitada em medidas como o congelamento orçamentário (EC 95), as reformas trabalhista e previdenciária, os ataques às universidades públicas, a criminalização dos movimentos sociais, as privatizações e o trato com os temas da soberania nacional.
O Decreto nº 9759/2019 reforça esse desmonte e integra o projeto autoritário de impor ao país um modelo de Estado impermeável ao diálogo e à participação nos debates de interesse coletivo e da nação.
O calendário estabelecido pelo decreto explicita o descaso com as consequências da extinção indiscriminada de colegiados para a continuidade de atividades inerentes ao funcionamento da gestão pública. Apenas 47 dias separaram a data de publicação, 11 de abril, do prazo para os órgãos e entidades da administração pública federal enviarem à Casa Civil a relação de colegiados que presidem, participem ou coordenem – 28 de maio. Tempo muito reduzido, considerando a data de extinção dos colegiados no dia 28 de junho, e que os agentes públicos foram pegos de surpresa com o teor do decreto tanto quanto a sociedade em geral. A despeito desse prazo, novo ato foi publicado no dia 7 de maio, o Decreto nº 9784, revogando a criação de 55 colegiados e transferindo suas atribuições aos respectivos órgãos responsáveis. Na maioria, colegiados com funções de acompanhamento da execução das políticas sociais e de representação dos segmentos mais excluídos.
A intenção de dar fim aos canais de participação já estava presente na Medida Provisória nº 870, enviada pelo presidente Bolsonaro ao Congresso Nacional em janeiro de 2019, com propostas de reordenamento dos ministérios e outros órgãos do Executivo Federal. Dentre outras medidas, a MP extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), recriado em 9 de maio pela comissão mista do Congresso Nacional, após intensa pressão e mobilizações de organizações da sociedade civil.
Na data estabelecida para a extinção dos colegiados, foram publicados 43 decretos alterando a composição, funcionamento e atribuições de 52 colegiados, assinados pelo presidente em exercício, general Hamilton Mourão. No geral, além da extinção de mais de setecentos colegiados, as medidas anunciadas diminuem o número de integrantes, alteram as regras para as deliberações, impõem limites à criação de subgrupos, restringem as competências e definem a periodicidade das reuniões. Dentre os colegiados afetados por essa leva de decretos estão os Conselhos Nacionais de Políticas sobre Drogas, de Combate à Discriminação, o Conselho Superior do Cinema e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
As reações ao desmonte foram imediatas e registradas manifestações de movimentos sociais, organizações da sociedade civil, partidos políticos, Ministério Público Federal, da Controladoria Geral da União, dentre outros, que resultaram em 129 propostas de permanência de conselhos enviadas à Secretaria Geral da Presidência da República. Desses, apenas 32 foram recriados, entre eles os conselhos vinculados aos temas referentes às pessoas idosas, à erradicação do trabalho escravo, à cultura e à imigração.
Mesmo após entrar em vigor, no dia 28 de junho, as informações do governo ainda não indicam quantos são os colegiados existentes envolvendo a participação social, quais estão em funcionamento e menos ainda quais as possíveis repercussões do decreto para a gestão das políticas públicas. Na opinião de especialistas do quadro técnico da administração federal, a medida não garante a agilidade de processos, pois a extinção dos colegiados vai exigir a criação de novas instâncias no âmbito da gestão pública para assumirem as competências exercidas pelos colegiados extintos. Assim, sob o argumento de desburocratizar a gestão e racionalizar gastos, o governo está alterando profundamente o modelo de gestão descentralizada e participativa de diversas políticas sociais, previsto na Constituição Federal e implementado a partir dos anos 1990.
Segundo matéria veiculada na imprensa, há uma estimativa de 2.593 colegiados existentes no âmbito do governo federal, sendo 734 criados por decretos ou portarias e que já podem estar extintos. Outros 863 sem identificação sobre a forma de criação, se por decreto ou lei, e 996 vinculados a Institutos Federais de Ensino, que por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não podem ser extintos pelo Decreto nº 9759. Resultado da Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pelo PT, questionando o decreto, provocou a primeira manifestação contrária do STF a atos do governo Bolsonaro contestados judicialmente.
As instâncias participativas, como conselhos, conferências, orçamento participativo, planos diretores, audiências públicas, fóruns e ouvidorias, são arenas democráticas para o encontro, a escuta, o diálogo e a convivência entre diferentes, divergentes e contraditórios. Se a representação de diversidades for excluída, deixam de ser espaços democráticos para serem transformados exatamente no seu oposto, um lugar onde vozes dissonantes não têm lugar.
Cabe ainda destacar um aspecto pouco observado no retrocesso provocado pelo Decreto nº 9759/19, que diz respeito aos conselhos criados por leis específicas, com caráter deliberativo e competências de, na sua área de atuação, normatizar ações e regular a prestação de serviços da política pública em todo o território nacional. Isso porque o alcance do reordenamento proposto atinge grupos de trabalho e comissões temáticas que integram a estrutura de funcionamento dos conselhos, responsáveis por produzir subsídios sobre matérias e temas a serem deliberados pelo conselho.
A extinção desses colegiados significa interditar a efetiva participação social nos processos de decisão sobre o desenho, a implementação e o controle social das políticas públicas, esvaziando os conselhos das competências para as quais foram criados. Esvaziando o Estado de participação e, portanto, de democracia.
Natalina Ribeiro é doutora em Serviço Social, Políticas Sociais e Movimentos Sociais. Consultora em formação e planejamento para processos participativos.
FONTE: Teoria e Debate
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