quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Papa consagra Teoria da Evolução


Por Frei Betto



O evolucionismo e o Big Bang não são incompatíveis com a existência de um Criador, declarou o papa Francisco à Academia de Ciências do Vaticano, a 28/10/2014: "Quando lemos a respeito da Criação no Gênesis, corremos o risco de imaginar que Deus era um mágico, com varinha de condão capaz de tudo fazer. Mas isso não é assim.”

A declaração coincide com o momento em que membros da Academia Brasileira de Ciências se reunirão, em Campinas, no 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente. Alguns desses cientistas defendem a teoria do TDI (Teoria do Design Inteligente), segundo a qual uma Inteligência Suprema, que muitos denominam Deus, criou diretamente a complexidade da célula humana.

A teoria da evolução afirma que todos os seres vivos descendem de um ancestral comum, e que o principal mecanismo responsável pelo surgimento das características desses seres é a seleção natural. Já o Big Bang é a explosão primordial que deu origem ao Universo.

A teoria do Big Bang foi esboçada pelos cálculos de Alexander Friedmann. Em 1927, o padre e cosmólogo belga George Lemaître publicou um artigo defendendo-a. Se as galáxias continuam a se afastar umas das outras, isso significa que, no passado, estiveram mais próximas. Considerada a distância dessa proximidade num tempo demasiadamente longo, então se conclui que houve um momento em que não havia espaços vazios entre as galáxias. Todo o céu era feericamente iluminado. Portanto, antes desse tempo teria existido uma época em que não havia espaços vazios entre as estrelas, precedido por um tempo em que não havia espaço entre os átomos e os núcleos no interior dos átomos.

Lemaître imaginou que, "um dia", todo o Universo coube numa esfera que batizou de "átomo primordial”. Ele teria explodido e se fragmentado em partículas elementares que formaram átomos, estrelas e galáxias, sem que houvesse explosão audível, pois não existiam ondas sonoras, e tanto o espaço quanto o tempo teriam tido início a partir daí.

Teria o inconsciente de Lemaître o remetido à imagem bíblica da Criação? Por ser ele sacerdote, sua teoria serviu de motivo de gracejos durante anos. Em 1927, ele tentou se aproximar de Einstein na 5ª Conferência Solvay, em Bruxelas, a fim de defender seu ponto de vista. O cientista alemão foi rude: "Seus cálculos são corretos, mas sua visão física é abominável."

Einstein, além de se sentir incomodado por uma cosmologia que negava seu Universo estático, desconfiava que Lemaître, como religioso, pretendia harmonizar a origem do Universo com a Criação bíblica.

Em 1931, em sua edição de 19 de maio, o New York Times deu em manchete: "Lemaître sugere que um único grande átomo, que continha toda a energia, foi o princípio do Universo." Tornou-se uma celebridade, a ponto de Einstein reparar seu preconceito e, malgrado sua falta de convicção, admitir que a tese do jovem sacerdote era a "maior, mais bela e satisfatória interpretação de fenômenos astronômicos."

Em 1996, João Paulo II admitiu: "Novas descobertas nos levam a reconhecer que a evolução é mais do que uma hipótese. A convergência dos resultados de estudos independentes constitui, em si mesma, argumento significativo em favor da teoria." E, em nome da Igreja Católica, penitenciou-se e reabilitou Galileu Galilei e Charles Darwin.

A TDI mescla inadequadamente religião e ciência e, a partir de uma leitura literal da Bíblia, defende que descendemos de seu Adão e dona Eva. Ora, Adão, em hebraico, significa "terra”; e Eva, "vida”. O autor do Gênesis não teve intenção de ensinar ciência, e sim que Deus incutiu em sua Criação uma dinâmica evolutiva própria, ora desvendada pela ciência.

Se Adão e Eva tiveram dois filhos homens, Caim e Abel, como estamos aqui? Os criacionistas aprovam o incesto de Eva com seus filhos?

Pobre da fé que busca na ciência muletas para se sustentar. Infeliz da ciência que se arvora em negar ou afirmar a existência de Deus.


Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.


FONTE: Adital

domingo, 9 de novembro de 2014

A radicalização deles e a nossa



Participante da Ocupação Santa Luzia, em São Gonçalo, Rio de Janeiro

Derrotada nas urnas, direita reage contra PT e projeto de mudanças superficiais. Dilma contemporiza. E se entrarem em cena os movimentos sociais?


Por Guilherme Boulos

Acabou a batalha do segundo turno. Dilma foi reeleita para a presidência da República em votação apertada. Ao final, a vantagem no Norte e Nordeste foi suficiente para compensar a derrota em São Paulo e no Sul do país.

A campanha deste segundo turno foi marcada por uma polarização que não víamos desde 1989. Mas diferente de 1989 — quando Lula falava em suspender o pagamento da dívida pública e em fazer reformas estruturais — agora não estavam em jogo projetos políticos tão antagônicos.

O PT manteve desde 2003 as linhas mestras da política econômica tucana. O controle da inflação às custas de juros e câmbio sobrevalorizado, a política de superávit primário para pagamento da dívida e as concessões da infraestrutura nacional e da exploração de petróleo para grandes empresas privadas.

Na política, ambos governam alicerçados no que há de mais atrasado na sociedade brasileira. Ambos mantiveram o PMDB como eminência parda da política nacional.

O PT nem ensaiou nestes 12 anos levantar a bandeira das reformas populares — bloqueadas no país desde João Goulart. Reformas urbana e agrária, reforma tributária progressiva, reforma política e do sistema financeiro. Auditoria da dívida pública, desmilitarização das polícias e democratização das comunicações. Estas são as pautas populares e de esquerda para o Brasil. Alguém as viu nos últimos governos?

Porém, a disputa entre Dilma e Aécio foi extremamente polarizada, tendo a elite brasileira e todos os setores mais conservadores se alinhado com o candidato do PSDB. Por que isso, se as diferenças não são tão grandes assim?

Quem polarizou as eleições de 2014 foi a direita. Ao PT não interessava a polarização, afinal governou durante 12 anos com discurso de um pacto social, de que todos se beneficiariam. Mas os setores mais atrasados da sociedade brasileira -assanhadinhos desde o ano passado- resolveram tomar o antipetismo como razão de existência.

Na linha mais conservadora, construíram um discurso racista, antipopular e de ódio aos pobres. As manifestações pró-Aécio fizeram lembrar a Marcha da Família com Deus de 1964. Os protagonistas inclusive foram os mesmos: a classe média de São Paulo e a fina-flor da elite urbana brasileira.

Até dirigentes do PSDB entraram na onda. José Aníbal evocou Carlos Lacerda, o maior golpista da história da República, para dizer que, tomando posse, Dilma não poderia governar. FHC enterrou algum resquício de credibilidade intelectual -se é que tinha- com sua fala sobre o voto dos nordestinos. Dizem que o governo Dilma não terá legitimidade. Legitimidade para essa gente significa o apoio da classe média do Sudeste.

Mas o segundo turno acabou e o PT levou a fatura. A eterna turma do deixa-disso, liderada por Michel Temer, já começa a costurar a repactuação das forças políticas e o fatiamento do novo governo. Polarização foi até domingo, agora é hora da união republicana pela governabilidade.

Ledo engano! Agora é que vai começar a ficar interessante. Polarização política, quando levada ao sentimento popular, não se desmonta com facilidade. E a situação econômica exige decisões que não poderão ser tão conciliadoras.

É claro que a vontade de Dilma é recosturar alianças e fazer um governo de unidade. Deixou claro isso em seu discurso da vitoria. Mas ela sabe que o mar não está para peixe. O crescimento econômico refluiu e isto impacta no Orçamento. A ideia de governar para todos — com lucros recordes para os bancos e empresas e algumas melhorias para os trabalhadores — não se sustenta na nova conjuntura.

A hora é de decisões. Ou se tomam medidas impopulares — daquelas anunciadas com regozijo por Aécio Neves — ou se enfrenta o desafio de reformas populares. O modelo lulista de conciliação nacional dá sinais claros de esgotamento, pois está baseado na combinação de crescimento econômico com desmobilização social. Junho de 2013 e a polarização eleitoral de 2014 foram sintomas disso.

Evidentemente, seria ilusório acreditar que o PT resolverá, de uma hora para outra, fazer as transformações estruturais que tirou de sua agenda desde antes de 2002. Tem de prestar contas para a JBS Friboi e para a Odebrecht, para Katia Abreu e Renan Calheiros. Mesmo que desejasse, não teria condições de dar esta guinada.

Mas é aí que entra o terceiro turno. A polarização da classe média de direita nas ruas reascendeu o outro polo: os trabalhadores organizados. Aliás, desde junho de 2013 as lutas populares urbanas e as greves tiveram um crescimento expressivo e contínuo. Assim como a radicalização da direita, a crise do modelo de conciliação começa a produzir uma radicalização popular.

Nesse cenário, se Dilma começar 2015 com cortes orçamentários e ajuste de tarifas, ela pode pacificar a elite e a turma do PSDB, mas terá de enfrentar a mobilização das ruas.

Pela primeira vez nesses 12 anos de petismo criou-se um caldo que pode recolocar na agenda as reformas populares. Não deixa de ser sintomático que Dilma tenha mencionado o plebiscito pela reforma política em seu discurso de união nacional. As contradições estão pulsando. É claro que a construção desta agenda não se dará por iniciativa nem vontade do PT, mas pela polarização das ruas e pelo fim de um ciclo econômico.

Será o terceiro turno das lutas. Agora sim os grandes antagonismos da sociedade brasileira poderão entrar em jogo.


O autor é integrante da Coordenação Nacional do MTST.

FONTE: Outras Palavras

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A Venezuela não é aqui


Por Luciano Martins Costa 



A mídia tradicional do Brasil está relegando a segundo plano a pauta da corrupção, que predominou durante a campanha eleitoral no rastro de reportagens, declarações, vazamentos e alguma ficção maquinada para alimentar debates e propaganda política.

A nova palavra de ordem da agenda que os jornais tentam impor ao campo político é: "bolivarianismo”. A expressão foi destacada na primeira página da edição de segunda-feira (3/11) da Folha de S.Paulo, em artigo do colunista Luiz Felipe Pondé e em entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, e ganhou as redes sociais na terça-feira (4).

No caso do articulista, pode-se arquivar o texto na "cesta seção”, onde um dia os arqueólogos do besteirol reacionário irão identificar os protagonistas que a imprensa classificava como "intelectuais” nas primeiras décadas do século 21. O problema cresce quando a imprensa se serve de um ministro da Suprema Corte para alimentar teorias conspiratórias.

O Brasil não é a Venezuela, não ocorreu no passado recente o advento de um líder caudilhesco que se possa comparar ao presidente Hugo Chávez, morto em 2013, e a política nacional inaugurada em 2003 com a ascensão da aliança liderada pelo Partido dos Trabalhadores não guarda a mais remota similaridade com o processo venezuelano.

O que há é um esforço de representantes do estrato mais conservador da sociedade para colocar o bode na sala e obrigar a presidente reeleita a negociar o bloqueio de qualquer projeto que se aproxime da regulação da mídia, nem que seja para cumprir o que determina a Constituição sobre a concentração dos meios de comunicação.

Assim age o cartel da imprensa: primeiro ameaça com uma crise por meio de boatos, especulações e meias-verdades, depois propõe a negociação. No caso que se evidencia nesta semana, trata-se de exacerbar os ânimos da massa de manobra que não aceita o resultado das urnas, com a tese de que a presidente vai transformar o Brasil numa ditadura em seu segundo mandato.

Por mais insano que possa parecer, esse é o mantra que vem sendo recitado na redação da revista Veja nos últimos dias. Os editores da revista dizem a quem quiser ouvir que estão empenhados em uma cruzada contra o fantasma de Hugo Chávez.

Jogo perigoso

A revista que já foi a joia da coroa do editor Victor Civita está preparando uma entrevista com um empresário venezuelano do setor de mídia para que ele diga como seria a imprensa num Brasil "bolivariano”. Depois das páginas amarelas de Veja, o conteúdo será reproduzido pelos jornais e provavelmente comentado pela TV Globo, no Fantástico ou no Jornal Nacional.

Protagonistas ensandecidos como o colunista da Folha acreditam piamente que "está em curso um processo de destruição da liberdade de pensamento no Brasil”. Ele chama Dilma Rousseff de "presidente bolivariana reeleita”.

O leitor fiel e de boa fé da Folha de S.Paulo pode argumentar que essa é apenas uma das muitas opiniões no diversificado cardápio de leituras que o jornal oferece diariamente. Afinal, personagens assim destrambelhados podem trazer alguma graça ao cotidiano da imprensa, para temperar a sisudez de um Clovis Rossi ou um Janio de Freitas. Mas não é possível dissimular que se trata de um texto de encomenda, ou seja, que faz parte da estratégia de edição.

Senão, vejamos: o assunto foi levantado na segunda-feira (3) em entrevista do ministro Gilmar Mendes, mas qual seria a oportunidade para transformar o jurista em notícia, se nada o destaca entre seus pares neste momento? Se ele estivesse dirigindo o Tribunal Superior Eleitoral, haveria aí uma pauta natural, uma vez que o principal partido da oposição questiona oficialmente o resultado das urnas. Fora isso, entrevistar Gilmar Mendes é apenas uma manobra para colocar na boca dele o que os editores querem dizer: que em dois anos o novo governo deverá nomear novos ministros do STF, e Mendes e os jornais acham que isso irá transformar a Suprema Corte em um "tribunal bolivariano”.

Não importa o argumento segundo o qual um tribunal formado por maioria de ministros nomeados por governos petistas condenou à prisão a antiga cúpula do PT. A imprensa teme que o tribunal se torne permeável ao cumprimento da regra constitucional sobre a concentração da mídia. O objetivo da manobra é dar credibilidade ao desvario sobre intenções totalitárias da presidente da República.

Com os aloprados golpistas assanhados nas ruas, trata-se de um jogo muito perigoso.


FONTE: Adital

domingo, 2 de novembro de 2014

O Brasil e as expectativas de mudanças ou de recuos


Por Aluizio Moreira


A partir do primeiro governo Lula em 2003, até o primeiro governo Dilma em 2014, algumas medidas chamadas “progressistas” ou “populares”, foram instituídas no Brasil. Não se tratava, aliás, como muitos “otimistas da esquerda” e “pessimistas de direita” pensavam, de uma caminhada em direção a uma transformação paulatina rumo ao socialismo, ou seja, da criação de uma base, para que a opção não capitalista no Brasil fosse possível. Embora fosse o que defendia  Lula da Silva, no discurso proferido em 1981, durante a 1ª Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores, quando admite que o PT  não poderia “jamais representar os interesses do capital” e afirmaria no mesmo discurso:  
“Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a criação do PT já sabiam disso muito antes de terem sequer a ideia da necessidade de um partido (…) Por isso sentimos na própria carne e queremos, com todas as forças, uma sociedade (…) sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista.” 
De 1981 para 2002, o discurso seria outro.

Na “Carta ao povo brasileiro” divulgada em 2002 e citada no artigo anterior, podemos colher algumas expressões que pontualmente apontavam na direção que o futuro governo Lula propunha: crescimento econômico conjugado às politicas sociais “consistentes e criativas”, que ía desde o incentivo às exportações tornando o pais mais competitivo no mercado internacional, ao agronegócio, à ampliação do mercado consumidor de massas, passando pelas reformas agrária e tributária. A proposta socialista não tinha mais espaço.

Na verdade era um leque de medidas bastante amplo que poderia  ser posta em prática, dependendo das negociações com os parlamentares, dentro dos limites do possível, e que não ferissem os interesses da burguesia, o que deveria acontecer se o Governo insistisse na Reforma Agrária, e outras reivindicações como as relacionadas à questão indígena e afrodescendentes, que por sinal nem sequer fizeram parte da “Carta ao povo brasileiro”, como de forma idêntica, nem uma palavra à saúde e à educação. 

No mesmo ano de sua posse, em novembro de 2003, o Governo Federal lançava o Programa LUZ PARA TODOS, criado pela então Ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, que visava levar energia elétrica para a população do meio rural.  E para demonstrar como Luiz Inácio tinha uma visão clara da interdependência de muitas medidas propostas para consolidar o capitalismo, numa entrevista concedida à Revista Carta Capital, nº 821, de 15 de outubro de 2014, ao ser perguntado sobre os benefícios do Bolsa Família e do crédito consignado, o ex-presidente se refere ao Programa Luz Para Todos da seguinte forma: 

[...] quando a gente levava o Luz para Todos, o beneficiado ligava três lâmpadas, comprava uma geladeira, 80% deles compravam um televisor. Ou seja, um simples programa chamado Luz para Todos, que levou energia para 15 milhões de brasileiros, resultou na venda de quase 4 milhões de mercadorias. Até empresas multinacionais ganharam muito com esse programa social.

É a logica do capital!. Como tal, a reprodução do sistema capitalista se dá em beneficio dos donos do capital, num processo constante de acumulação.  Não há como humanizar o capitalismo.

Mas como o capitalismo é um sistema cíclico, em que momentos de expansão são intermediados por momentos de crise, desde o final do século passado aos inicios desde século, o capitalismo internacional entrou numa fase de depressão, cujos sintomas estouraram em várias partes o mundo: a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, os Indignados na Espanha, os movimentos rebeldes na Turquia, Grécia, Islândia. . . atingindo o Brasil em junho de 2013. Nosso país começava a dar indícios de esgotamento. Afinal, numa economia globalizada, os efeitos das crises também são globalizadas, “para mais ou para menos”.

Lá fora, como aqui, os movimentos de massas se direcionam contra os efeitos do capitalismo (não contra suas causas), que termina por provocar uma crise de representatividade parlamentar (ver o caso da  Islândia), a favor de mudanças. Ai está o tom da politica eleitoral no Brasil: mudanças.

A bandeira das mudanças no processo eleitoral no nosso país, mobilizou muito mais pelo chamamento, do que pelo conteúdo dessas mudanças. A tônica do discurso da mudança propunha um país solidário, um país de todos, um país honesto, um  pais respeitoso, um país generoso, sem definir o solidário, o de todos, o honesto, o respeitoso, o generoso.

Junto a esses slogans de campanha que não diziam muita coisa, outras questões mobilizadoras foram criadas caindo como uma luva na “cabeça” dos eleitores, e até certo ponto, com sua logicidade: se o sentimento era de mudança, não tinha sentido votar pela permanência do PT no poder.
   
Resultado que refletiu na bipolaridade: reeleição de Dilma e o crescimento de uma onda conservadora e de direita. A mídia, as redes sociais, são termômetros dessa realidade: a campanha contra a Venezuela, contra os cubanos do Programa Mais Médicos, contra a Rússia, contra o que chamaram avanço do comunismo no Brasil (Já vivenciamos clima idêntico em 1963/1964).

As coisas beiram as raias do absurdo, em direção à intransigência por total falta de informação (ou manipulação das informações?). Por exemplo o Programa Mais Médicos quando implantado, ofereceu prioritariamente vagas para médicos brasileiros para atuar em regiões onde havia falta de profissionais. O não preenchimento das vagas abriu espaço para a candidatura de médicos estrangeiros (não especificamente para médicos cubanos). Outro exemplo: não existe a mínima possibilidade de um país transferir para outro sua experiência politica, digamos, o “bolivarianismo” venezuelano ou o “sovietismo” russo. 

Neste fim de outubro, antes mesmo da posse dos parlamentares eleitos, a politica já sinalizava para o que será a convivência executivo/legislativo pelos próximos 4 anos. 

A questão do plebiscito proposto pela presidenta para a Reforma Politica, foi de imediato descartada por nossos parlamentares, antes mesmo que chegasse na Câmara para discussão. O Renan Calheiros por sua vez, já antecipou a posição do Senado: “por ali não passará”. Por dedução, nem pensar numa Assembleia Constituinte exclusiva, pois tiraria do parlamentar em exercício, a possibilidade de legislar em causa própria. Sobrou o referendo (?). 

Na terça feira 29 de outubro, a Câmara rejeitou o Decreto 8.243/2014, que criava a Politica Nacional de Participação Social (PNPS), disciplinando a atuação dos Conselhos e Comissões existentes na sociedade civil, que ampliaria o diálogo com os movimentos sociais, e que muito embora a PNPS não crie mecanismos que rivalize com os poderes constituídos, foi sutilmente identificado com os conselhos “bolivarianos” e até com os “sovietes”.

Diante deste quadro, a se consolidar a politica de estreitamento politico liderado pelos conservadores e direitistas no Congresso e fora dele, as propostas do Governo voltadas para o atendimento das principais reivindicações dos movimentos sociais e da sociedade civil e no sentido de uma democracia participativa, podem não acontecer.

O que já temos percebido, é que o clima de antipetismo tente a perdurar para além das eleições. Paira no ar (e na mídia e nas redes online), uma atmosfera de tentativa de desestabilizar e desacreditar o Governo reeleito, dificultando ou impedindo aprovações de propostas de iniciativa da Presidência, e de apelação indisfarçada ao golpismo. 

Quais as opções politicas oferecidas ao Governo e à sociedade civil? Vejamos: o Governo tender para uma guinada mais à esquerda, nos parece ser uma possibilidade bastante remota. Segunda opção: o Governo Dilma poderá ceder às pressões das forças politicas de oposição criminalizando os movimentos sociais ou se omitindo, em troca da chamada governabilidade. Por fim, aos movimentos sociais organizados (urbanos e rurais, incluindo indígenas, afrodescendentes, LGBT) e à sociedade civil, restaria a ocupação do espaço público nas cidades e no campo, como forma de pressionar a sociedade politica, na busca de uma solução negociada para suas reivindicações.

Esperamos que as contradições, mais que os antagonismos, sejam superadas a favor da maioria da sociedade. Afinal de contas, não está em jogo a transformação da estrutura socioeconômica do país como muitos infundadamente temem, mas de viabilizar o capital.

sábado, 1 de novembro de 2014

Carta Aberta da CPT à presidenta Dilma Rousseff


Sra. Presidenta da República Dilma Rousseff

                                                                                                 
Excelentíssima Senhora,


A Comissão Pastoral da Terra, CPT, reunida em Conselho Nacional, em Luziânia-GO, entre 27 e 29 de outubro de 2014, dirige-se respeitosamente a V. Excia. para, em primeiro lugar, parabenizá-la pela reeleição e desejar-lhe um novo mandato profícuo e benéfico para toda a nação brasileira, de modo especial para os menos favorecidos, já que foram estes a maioria dos que a reelegeram. Por isso merecem uma atenção toda especial de sua parte.

Atendendo à sua abertura e solicitação para o diálogo, expresso em seu primeiro pronunciamento após a vitória nas eleições, queremos apresentar-lhe situações e questões nacionais que passaram ao largo de toda a campanha eleitoral e que, agora, forçosamente, se tornam em alertas e reivindicações. São situações, questões e reivindicações dos povos dos campos, das águas e das florestas com quem a CPT atua e apoia.

A Senhora ao assumir a presidência jurou, e novamente vai jurar, defender e aplicar a Constituição Federal. Esta, em seu artigo 184, diz que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. Constatamos que, sobretudo em seu mandato atual, no que exige este artigo, a Constituição foi tratada como letra morta, pois foi efetuado o menor número de desapropriações dos últimos 20 anos. Também não foi feita a retomada das áreas devolutas e da União que estão nas mãos de grileiros. Atribuímos isso à total falta de interesse político de seu governo em relação a este tema. São claramente privilegiados os interesses de grupos ruralistas que estão entre os principais que sempre comandaram e desmandaram sobre este país.

Estes grupos alinhados ao modelo desenvolvimentista predador estão entre os responsáveis pela devastação ambiental dos nossos biomas, com o desmatamento e a utilização intensiva de agrotóxicos que suprimem a proteção vegetal e contaminam solos, águas, ar e trabalhadores e trabalhadoras. Provocam ainda o secamento e morte de nascentes e rios, e o rebaixamento de lençóis freáticos e aquíferos. A destruição dos Cerrados compromete a segurança hídrica atual e futura, o que já se evidencia na crise de abastecimento de várias regiões do país, que não se pode atribuir simplesmente à falta de chuvas. Ao se expandir para a Amazônia, este modelo chega à última fronteira, agrava a crise ecológica e nos põe a temer ainda mais pelo futuro...

Seu governo e os do Presidente Lula, tidos como "populares”, nos quais – acreditava-se – fariam a diferença, em relação aos anteriores, para os povos do campo, acabaram se submetendo às exigências econômicas e políticas do agronegócio e deixaram milhares e milhares de famílias em situações mais que precárias, desumanas, em acampamentos à beira de estradas.

Senhora Presidenta, a retomada da Reforma Agrária, ressignificada, efetiva e melhorada, é uma medida mais que urgente que seu novo governo deve tomar, pois ela irá melhorar os índices da produção familiar, que já é responsável por 70% dos alimentos consumidos no País. Uma política de maior apoio aos camponeses e camponesas das várias categorias existentes no País, potencializará uma produção alimentar qualitativamente diferente, saudável e harmônica com os bens da terra. Os programas de seu governo – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – provam a eficácia da agricultura familiar, responsável principal pela saída do Brasil do mapa mundial da fome, segundo a ONU em recente relatório.

Outro dispositivo constitucional, que deve ser aplicado com firmeza e determinação e com a maior urgência, é o Art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que diz que "a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Passaram-se 26 anos e a maior parte das terras indígenas ainda não foi demarcada. E o mais lamentável é que seu governo tenha determinado a suspensão da identificação das Terras Indígenas, propondo "mesas de conciliação”, que são uma forma de reduzir ou mesmo eliminar o direito à terra dos povos e comunidades, pois, como bem se sabe, "a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”... Dezessete decretos de homologação de Terras Indígenas estão sobre sua mesa só aguardando sua assinatura, Presidenta! Outros tantos estão sobre a mesa do Ministro da Justiça para encaminhamento. Isso demonstra a falta de sensibilidade em relação a esta causa, que é de todos nós. A isso se soma a tentativa de retirar da FUNAI a competência para a identificação e demarcação dos territórios indígenas, repassando-a a órgãos que pouco ou nada sabem da realidade e história indígenas. Com isso crescem os conflitos, carregados de violência, com aumento do número de assassinatos e que colocam os primeiros habitantes deste País numa situação de inferioridade, a perpetuar o massacre da época colonial.

O mesmo acontece em relação aos quilombolas. O artigo 68 das ADCT dispõe que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No seu primeiro mandato, esta determinação também não foi praticamente efetivada, fazendo crescer o número de conflitos envolvendo estas comunidades.

Os interesses do agronegócio – com suas monoculturas de soja, cana de açúcar, gado, eucalipto e outros –, o das mineradoras e a aposta em grandes projetos como o de construção de barragens e outras obras de energia, se sobrepõem aos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, das comunidades de fundo e fecho de pasto, dos pescadores artesanais, dos faxinalenses, dos extrativistas e de outras comunidades tradicionais, e até de assentados e assentadas da reforma agrária, que são expulsos da terra com o consequente desenraizamento das famílias.

Senhora Presidenta, os conflitos e a violência, inclusive com assassinatos de camponeses e camponesas, 130 no seu governo, conforme os dados registrados pela CPT, acobertados pela impunidade, só tenderão a crescer se se mantiverem a inoperância e a corrupção em muitos órgãos governamentais, ao par do que fazem ou deixam de fazer o Legislativo e o Judiciário. O INCRA, a Fundação Cultural Palmares, além da FUNAI, devem ser fortalecidos, aprimorando os seus quadros e sua atuação.

Outra situação que merece especial atenção da sua parte é a dos trabalhadores e trabalhadoras submetidos à condição análoga à de escravos. Neste sentido lembramos que a Senhora assinou a Carta-Compromisso, proposta pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), de garantir a continuidade e a intensificação do combate ao trabalho escravo, especificamente de que não haja nenhum retrocesso na legislação vigente.

A CPT também se preocupa com a educação no e do campo. Milhares de escolas rurais têm sido fechadas, nos últimos anos, obrigando estudantes a longas viagens para longe de seu meio. Com isso a eles e elas se oferece uma educação descontextualizada que favorece o êxodo rural e o esvaziamento do campo. Muitas outras escolas que se mantêm abertas estão em condições mais que precárias. Senhora Presidenta, é urgente uma política educacional voltada para a permanência das famílias no campo, com o fortalecimento das Escolas Família Agrícola (EFAs), das Casas Familiares Rurais, das escolas indígenas, das escolas quilombolas e outras do gênero.

Senhora Presidenta, podemos esperar de sua parte uma atuação ativa para garantir aos povos dos campos, das águas e das florestas seus direitos constitucionais, sobretudo de acesso às terras e aos territórios que historicamente lhes pertencem e dos quais foram esbulhados? Ou vamos continuar assistindo a uma atuação de cunho colonialista, que vê nestes povos e comunidades simplesmente "entraves ao desenvolvimento”, ao "crescimento”?

Esperamos de V. Excia. um governo renovado, mais comprometido com as causas populares, que estavam na origem de seu partido. De nossa parte conte com este nosso apoio: continuar ao lado dos camponeses e camponesas do Brasil, em suas lutas e esperanças.

Luziânia, 29 de outubro de 2014.

Dom Enemésio Lazzaris
Presidente


FONTE: Adital

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A que(m) serve o sistema político brasileiro?


A arquitetura do sistema político brasileiro implica a proteção dos proprietários em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se eleger como para governar os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa”


Por Francisco Fonseca (*)


O mal-estar da sociedade brasileira, mesmo com os grandes avanços que vêm se processando desde a última década e meia (e mesmo desde a Constituição de 1988), aponta primordialmente para o sistema político. Direta ou indiretamente, em particular as manifestações de junho de 2013 escancararam, com base nos graves problemas do cotidiano dos brasileiros, as feridas de um sistema claramente incapaz não apenas de resolvê-los, mas, sobretudo, de dar vez (e, em certo sentido, voz) aos reclamantes, notadamente os pobres.

Entende-se por sistema político o conjunto de normas e instituições que regulam os conflitos por meio de canais de expressão e resolução. É constituído por – na falta de melhor denominação – “subsistemas”: partidário, eleitoral, os poderes constituídos e suas diversas instituições, o regime federativo, e mesmo a mídia (que atua como poder paraestatal). Trata-se, portanto, de institucionalidade formal que, contudo, como veremos, convive e se articula com mecanismos informais de naturezas diversas.

A lógica do sistema político brasileiro

A atual moldura do sistema político brasileiro foi criada durante o último período militar (governo Figueiredo), e suas características se mantêm, com algumas poucas transformações, até os dias de hoje. Vejamos as principais características, sem a pretensão de esgotá-las:

• Financiamento privado das campanhas e partidos. Embora formalmente o financiamento seja misto (público, via fundo partidário e privado, por meio de doações, notadamente de empresas), na prática é largamente privado, tendo em vista o chamado caixa dois. Mas deve-se ressaltar que mesmo o financiamento privado legal, em que há leis e controles, é, por princípio, ilegítimo, em razão da assimetria econômica que impõe aos partidos. Em qualquer sentido, a vida pública tornou-se essencialmente organizada pelo poder privado do capital e, além disso, a própria dinâmica do poder implica relações ocultas – que permanecem mesmo com os avanços nos processos de transparência –, por meio da ampla rede de fornecedores privados.

• Multipartidarismo extremamente flexível, pouco representativo e estimulador do “mercado da política”. Embora a existência potencial de diversos partidos seja fundamental à democracia, uma vez que pode permitir a expressão de interesses e visões de mundo distintos, o multipartidarismo criado pelo general Golbery objetivava justamente a pulverização das forças políticas de oposição de tal modo que não tivessem poder suficiente para derrotar o status quo civil-militar. Consolidada a retirada dos militares da cena política, o multipartidarismo teve outros objetivos, para além da pluralidade político-ideológica expressa nos diversos partidos, tais como: a) a formação de alianças eleitorais, em larga medida não programáticas, tendo em vista a soma do tempo de rádio e TV referente à propaganda eleitoral; b) a coalizão – inclusive com vários dos partidos derrotados nas eleições – para a composição de maiorias após a vitória eleitoral, igualmente não programáticas, com vistas a constituir uma “base governista” ampla capaz de aprovar medidas de governo; e c) o chamado “balcão de negócios”, em que barganhas dos referidos tempos no rádio e na TV e na formação de alianças, assim como todo tipo de “varejo” parlamentar perante o Executivo, tornaram-se o modus operandi da vida política.

• Não consolidação dos partidos políticos como agentes de representação social popular, uma vez que a lógica sistêmica da vida política implica tanto a “privatização da política” como a ocupação dos espaços institucionais pelos partidos da “ordem”, cujos interesses fulcrais são a defesa do capital e das classes médias e superiores. Esse processo é, contudo, enevoado pelo discurso da “eficiência”, da “eficácia”, do “empreendedorismo” e quejandos. A infidelidade partidária (apenas recentemente minorada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, mas driblada pela nova onda de criação de partidos) apenas confirma esse postulado.

• Acesso ao rádio e à TV a todos os partidos com representação federal independentemente de sua representatividade social. Dessa forma, os chamados “partidos de aluguel” – jargão político trágico da vida institucional –, cuja representação parlamentar é minúscula, obtêm todas as (diversas) benesses do sistema político, reforçando a pulverização e a privatização da vida política.1

• Não transparência quanto ao uso dos recursos eleitorais (apenas as doações legais são efetivamente fiscalizadas pela ação da Justiça Eleitoral), uma vez que a prática do caixa dois é complexa e em larga medida vigente no cotidiano da vida político-administrativa: daí a espessa névoa que encobre inúmeros processos licitatórios no contexto da relação entre poder público e setores do capital. Em outras palavras, o financiamento privado ilegal não ocorre apenas em períodos eleitorais, pois tende, sobretudo após a “emenda da reeleição” – verdadeiro golpe branco desferido contra a democracia pelo governo FHC –, a fazer parte do cotidiano de quem assume o poder, excetuados os que lutam contra a roldana do sistema.

• Baixo controle social, em termos institucionais, dos cidadãos perante os representantes eleitos, cujo mandato se torna “propriedade” destes, o que faz da representação política arena de negociação distante e muitas vezes em oposição aos interesses populares. Portanto, quanto mais distante do cidadão comum, mais privatizado e elitista se torna o sistema político.

• Destituição dos poderes do Parlamento quanto à proposição da “agenda” política e de políticas públicas transformadoras, em contraste ao potencial lócus de representação plural e particularmente popular. A chamada “crise do Parlamento” é, dessa forma, estratégica ao jogo das elites, uma vez que o rebaixamento do Legislativo implica hipertrofia do Executivo, em que a tomada de decisão é infinitamente mais rápida e informal.

• Sistema eleitoral voltado tanto à desvalorização dos partidos – enquanto instituição, com a consequente personificação de indivíduos – quanto à pulverização e fragmentação da representação partidária. Ressalte-se que a personificação tem potencial desmobilizador da ação coletiva.

• Sistema midiático oligopolizado e oligárquico, notadamente a rede concessionária de TVs e rádios, articulada a jornais, revistas e portais, cujos órgãos atuam como verdadeiro “Partido da Imprensa Golpista”, conforme expressão notabilizada por Paulo Henrique Amorim. A mídia é um ator político paraestatal com grande poder de influenciar tanto a percepção social da vida política como a formação de consciências. É claramente partícipe do jogo político, embora estrategicamente seu discurso oculte tal atuação. Deve-se, dessa forma, considerá-la como parte do sistema político, o que implica necessariamente sua reforma, à luz, por exemplo, do que ocorreu na Argentina por meio da Ley de Medios.

Apesar de claramente disfuncionais à representação dos interesses populares, essas características são justificadas pelo debate político e pela ciência política dominante como garantidoras da chamada “governabilidade”, isto é, das condições de obtenção de maioria para governar, nos respectivos parlamentos, com vistas à consecução dos objetivos da coalizão de governo.

Sistema político vs. interesses populares

Essa forma de organização do sistema político claramente não contempla grande parte dos interesses populares – voltados à resolução dos ainda graves problemas do cotidiano, relacionados tanto ao emprego e à renda como ao acesso a bens e equipamentos públicos e privados –, que passam em larga medida pela reversão de prioridades em termos de agenda e de orçamento. Aliás, o travamento decisório de inúmeros temas que afetam os brasileiros, em especial os pobres, fundamentalmente garante o status quo. Entre esses temas estão, além de inúmeros outros exemplos, a reforma tributária, uma vez que os impostos, ao serem indiretos, tributam pesadamente os pobres; a dívida interna, nas mãos de cerca de 20 mil famílias e dos bancos; o papel dos bancos e do capital especulativo, altamente lucrativos e sem responsabilidades sociais; o papel e financiamento do agronegócio, que sorve parte significativa dos recursos orçamentários da agricultura, em detrimento da produção agrícola familiar; o papel do BNDES como agente de financiamento a grandes empresas, sem controle social; o oligopólio da mídia e a não regulamentação da Constituição quanto ao papel dos meios de comunicação.

Aos movimentos sociais, essa dinâmica não tem passado despercebida, como se pode observar no manifesto do Grito dos Excluídos, publicado no dia 7 de setembro: “A estrutura do Estado brasileiro historicamente tem servido aos interesses das elites e para a manutenção de seu poder sobre os/as trabalhadores/as, os/as excluídos/as, sobre o povo brasileiro. Poucos são os espaços nos quais o povo tem realmente sua voz escutada e poucas são as oportunidades de interferir nos rumos da política em geral, especialmente na construção de políticas públicas voltadas para a maioria da população. Nos últimos anos temos presenciado essa estrutura de poder oprimindo as populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas pelo desrespeito a sua cultura e seus territórios. Nas regiões rurais, indígenas e sem-terra têm seus direitos violados em favor dos empresários do agronegócio. Nos estados e municípios, principalmente nas regiões periféricas, as polícias militares matam jovens, principalmente os negros homens entre 15 e 29 anos. As forças de repressão perseguem lutadoras e lutadores, organizados ou não, que protestam por um país mais justo e igualitário. A estrutura do Judiciário opera com dois pesos e duas medidas, atuando em favor dos poderosos e contra o povo. As eleições para os cargos legislativos e executivos são um grande balcão de negócios e impedem, através das regras de organização eleitorais, que mulheres, negros/as, sem terra, trabalhadores/as, indígenas, quilombolas e outros setores populares da sociedade acessem os espaços de exercício do poder. O sistema político impede avanços sociais de interesse do povo”.2

Como se observa, o sistema político é apercebido pelos movimentos populares – o excerto citado é apenas uma amostra, representativa, do pensamento de outros tantos movimentos – como distante e elitista, portanto, não representativo da pluralidade dos interesses sociais e sobretudo da maior parte dos cidadãos.

Mesmo movimentos mais propriamente institucionalizados, como a Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, assume posição bastante similar, pois: “[O] Congresso impede que tais reformas [democrático-populares] sejam aprovadas. Isso porque parte dele representa os interesses de uma pequena parcela da sociedade que financia as campanhas eleitorais, ou seja, de algumas poucas empresas. Assim, as necessidades da maioria da população nunca são atendidas de verdade. É isso que causa grande parte da corrupção política gerando inclusive a atual crise de representatividade no país. Só com uma reforma política democrática será possível superar tais problemas que degradam a democracia brasileira”.3

Como se vê, reitera-se aquilo que, em perspectiva internacional, foi apontado pelo movimento Occupy Wall Street como “We are 99%”, isto é, a percepção popular de que o sistema político não apenas não representa a maioria esmagadora das pessoas comuns, como também, sobretudo, é apropriado privativamente pela minúscula parcela do capital: uma verdadeira plutocracia encoberta pela “democracia formal”.

Sistema político voltado à proteção das elites

Essa arquitetura do sistema político brasileiro implica essencialmente a proteção dos proprietários (de diversas frações do capital) em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se eleger (reitere-se o papel do financiamento privado e das coligações para obtenção de tempo no rádio e na TV) como para governar (“dívida” para com os financiadores e necessidade de maioria parlamentar para ter “governabilidade”), os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa” de governo.

Decorre daí a formulação de políticas públicas tímidas, uma vez que não podem atentar contra grandes interesses constituídos, e contraditórias, pois necessitam contemplar as coalizões – de partidos “da ordem” com os que só existem por “jogar o jogo” institucional. Tudo isso impede a efetivação de reformas “radicais”.

Dessa forma, as chamadas “reformas progressistas”, colocadas em prática pelos governos Lula e Dilma na área social, só podem ocorrer de forma incremental, tímida e sem assustar as elites. É por isso que muitos dos grandes gargalos estruturais não são destravados, tais como: sistema judiciário-prisional apenas voltado aos pobres; reforma agrária e política agrícola tímidas; poder desmesurado dos bancos e do capital financeiro; desmontagem progressiva da CLT; ainda pequena proporção do PIB nos gastos sociais; intocabilidade da taxação às grandes fortunas; poder desmesurado do agronegócio; intocabilidade da mídia; entre inúmeros outros.

Pode-se dizer, portanto, que o sistema político brasileiro rigorosamente constrange os partidos políticos que lutam pela diminuição “radical” da desigualdade social. As políticas públicas, isto é, o conteúdo da democracia, são, dessa forma, moldadas de acordo com essa estrutura inabalada do sistema político, o que implica atraso quanto ao desenvolvimento social (mensurado por indicadores como o Índice de Gini, o IDH e tantos outros), proteção às elites econômicas e distanciamento entre sistema político e os que mais precisam dele!

A reforma do sistema político

Reformar o sistema político, embora não seja panaceia, é, portanto, tarefa urgente para relegitimar a democracia brasileira, aproximando-a do cidadão comum e dando-lhe instrumentos para, naquilo que cabe à ação política institucional, poder haver a presença dos interesses populares. Como se observa pela experiência, os movimentos sociais são particularmente responsáveis por essa tarefa, uma vez que a lógica do sistema político tende a engolir os partidos institucionais num círculo vicioso assim constituído: sistema partidário/eleitoral privatizante; lógica institucional que veta grandes transformações; democracia formal e plutocrática.

Os perigos desse sistema, cuja disfuncionalidade é igualmente sistêmica, apresentam-se tanto nas ruas (ressurgimento da extrema direita, por exemplo) como em aventuras eleitorais, que, aliás, vimos no passado e são potencialmente presentes (caso do discurso despolitizante de Marina Silva).

Trata-se de tarefa urgente! 



(*) mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.



Ilustração: Daniel Kondo


1  É claro que os pequenos partidos ideológicos sofreriam com uma reforma política, caso houvesse, por exemplo, a instituição da “cláusula de barreira”, o que geraria enorme crise de legitimidade. Contudo, instrumentos como “federação de partidos”, em que pequenos partidos possam somar, por afinidade, seu eleitorado, seriam uma saída, entre outras. Não há reforma sem impactos múltiplos. A questão central diz respeito à “desprivatização” da vida pública, no limite do que cabe à ação política, ao aumento da representatividade popular e ao fim da “democracia plutocrática”.

2 Disponível em: 
<www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/09/no-dia-da-independencia-grito-dos-excluidos-pede-politica-capaz-de-mudancas-estruturais-8024.html>

3 Disponível em:<www.reformapoliticademocratica.org.br/conheca-o-projeto/>



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O Brasil numa encruzilhada: breves comentários


Por Aluizio Moreira


Passado o clima tenso das disputas eleitorais com a vitória de Dilma Rousseff, é fundamental que procuremos entender o “novo” quadro politico brasileiro, para além do voto. 

Esse “novo quadro politico” (nem tão novo assim!) surgido com as eleições deste outubro, já vinha, creio eu, se desenhando antes mesmo da posse de Lula em janeiro de 2003, quando as possíveis alianças que começavam a ser delineadas do PT com a chamada esquerda socialista, foram frustradas  em junho de 2002, com o lançamento da “Carta ao povo brasileiro”, que jogava na lata do lixo o “Programa dos 100 dias”, que congregava o PCB, o próprio PT, o PDT, o PSB e o PCdoB, na tentativa e estabelecer-se uma plataforma politica voltada para os interesses democráticos e populares.

Na referida Carta, que enterrou de vez o “Programa dos 100 dias”, Lula procurava acalmar o mercado financeiro e as oposições politicas e empresariais internas, que se aglutinavam contra sua possível vitória eleitoral, levantando naquela ocasião, a bandeira da mudança “para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos.”

Permitam-me reproduzir algumas passagens da “Carta ao povo brasileiro” que orientaria o Governo petista por 16 anos e que paulatinamente o foi conduzindo para os impasses atuais, sobretudo pelo abandono das pautas reformistas, ao assumir o poder.

Êis como a “Carta ao povo brasileiro” procurava justificar o lançamento de uma candidatura que, convenhamos! abriu um espaço para confiança nas mudanças significativas na nossa sociedade:

“Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz um balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.”

Mais adiante:

“O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se.”

A partir dai o PT acena para as mudanças pretendidas, como parte de um Programa Politico amplo e capaz de mobilizar um grande contingente de apoiadores, pelo menos por um número razoável de setores progressistas e da classe média: crescimento econômico, geração de emprego e renda, redução da criminalidade, respeito de nossa “presença soberana e respeitada no mundo”, criação de um “amplo mercado interno de consumo de massa”, reforma tributária, reforma agrária, redução das carências energéticas, revisão das privatizações tucanas, diminuição do déficit habitacional, reforma da previdência, reforma trabalhista, institucionalização de programas contra a fome e insegurança pública.

Para realização de todo este Programa o Governo empossado necessitaria de “uma ampla negociação nacional”, que deveria conduzir a uma politica de alianças pelo pais, a um novo “contrato social”, capaz de “assegurar o crescimento com estabilidade”, dinamizando nossas exportações, investimento na infraestrutura, prioridade para geração de divisas, valorização do agronegócio. Tudo isto só seria possível, na medida em que o PT estivesse “disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade”. (Mera coincidência com o discurso da presidente após sua reeleição?)

O fato é que o Governo Lula abandonou uma politica de pretendidas reformas sociais, favorecendo o grande capital com a transferência de recursos públicos, beneficiando o capital financeiro, o agronegócio, procurando favorecer as empresas multinacionais com a politica de precarização do trabalho e da flexibilização do direito trabalhista. O grande arco de alianças para manter a chamada “governabilidade”, tornou-se uma prática politica, além de cooptações de organizações sindicais, partidos políticos de uma autodenominada esquerda, com o loteamento de cargos e ministérios entre seus aliados.

Após dezesseis anos de mandato petista, o que restou da reforma agrária, da reforma tributária, da demarcação das terras indígena, da defesa das comunidades negras e quilombolas, da prometida revisão das privatizações, da auditoria da divida publica prevista na nossa Constituição? O que dizer da implantação da mercantilização do ensino universitário, da saúde, da previdência social?

Em junho de 2013 testemunhamos a eclosão de um movimento de grande amplitude nacional, que punha em cheque a falta de sensibilidade politica e de compromisso com as questões sociais e populares do Governo petista. Foi o sinal de um “esgotamento” de toda uma politica social e econômica, que parecia repetir o esgotamento identificado por Lula na sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002. A grande diferença qualitativa, é que no bojo daqueles movimentos sociais e populares de 2013, conservadores e direitistas mesclaram-se com esses movimentos, fazendo coro contra o governo, contra a politica e contra partidos. 

O discurso das mudanças ganhou novamente as ruas: contra a corrupção, pelo descaso da educação, da saúde, em defesa da segurança publica e da mobilidade urbana. Mas há mudanças e mudanças. As mudanças podem ser canalizadas para a esquerda ou para a direita.

Arrisco dizer que há uma ligação direta entre o junho de 2013 e o outubro de 2014. Com um saldo que pende para o conservadorismo e para a direita, sobretudo pelo discurso preconceituoso e agressivo e sintomaticamente antissocialista. Como se o espectro do comunismo tivesse rondando os lares dos brasileiros: em pauta, a critica agressiva à Venezuela, à Cuba, ao Mais Médicos, que ganharam as redes sociais.

Quais as perspectivas politicas para o Brasil daqui para adiante? 

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