terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O especialista diante da “complexidade” do mundo (2)

                         "O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada." - George B. Shaw 

Por Aluizio Moreira



Enquanto a sociedade não atingira um grau de complexidade como o verificado com o surgimento e expansão do capitalismo após os séculos XVIII e XIX, os homens que se dedicavam à ciência, à filosofia, às artes o faziam simultaneamente, mesmo que não apresentassem ligações entre si. Isto porque até Platão, verificamos que as particularidades do conhecimento na forma que conhecemos hoje, simplesmente não existiam. A matemática, a química, a física, a medicina, etc., não constituíam campos específicos do conhecimento humano. Daí não há porque nos surpreender que Aristóteles tenha se dedicado à política, literatura, física, medicina, história natural, biologia, e matemática; Roger Bacon tenha feito incursões pela física, biologia, matemática e química; Leonardo da Vinci tenha sido pintor, escultor, arquiteto, músico, matemático, filósofo, além de se interessar pela astronomia; Galileu Galilei tenha se dedicado à matemática, medicina, mecânica; Isaac Newton foi matemático, astrônomo e poeta.

Essa diversidade de conhecimentos e de atividades exercidas por um mesmo individuo, explica-se antes de tudo, pelo modesto nível de desenvolvimento das sociedades da época.

Segundo Fachin (2003, p.16), deve-se a Aristóteles a primeira tentativa de classificação da ciência, que o fez, dividindo-a em três grandes troncos: ciências teóricas (física, matemática, metafísica), ciências práticas (ética, economia e política), ciências poéticas (“as obras produzidas pelo homem”). 

O crescimento cada vez mais acelerado das populações urbanas e o consequente aumento do mercado consumidor, as necessidades de elevação do nível de produtividade, de aceleramento das comunicações e dos transportes, de maior domínio do homem sobre a natureza. . . tudo isso contribuirá de maneira irreversível, para um maior avanço das ciências e dos saberes em geral. O conhecimento “enciclopédico” não seria mais possível.

A pergunta inicial que deveremos fazer na tentativa de encaminharmos a questão é: historicamente, qual tem sido a função de uma Instituição do Ensino Superior?

Embora na Antiguidade Clássica, especialmente Grécia e Roma, não existisse universidades nem quaisquer instituições que pudéssemos considerar de Ensino Superior, existia escolas

tidas como de alto nível, para formar especialistas [grifo nosso] de classificação refinada em medicina, filosofia, retórica, direito. Discípulos que se reuniam em torno de um mestre, cuja considerável bagagem de conhecimentos era zelosamente transmitida. (LUCKESI et al, 1991, p. 30)

Só entre os séculos XI e XV, portanto na Idade Média, é que surgem as primeiras universidades, voltadas para a preparação de uma intelectualidade que se dedicava aos estudos da natureza e às questões relativas ao espiritual, ao religioso. Nesta época coube à Igreja Católica manter a unidade do ensino superior e do “conhecimento básico para todas as especialidades e proporcionar aos futuros especialistas uma formação inicial unitária e geral”. (ibid., p. 31)

No século XIX, diante do avanço da industrialização na França napoleônica, as universidades tendem a perder o sentido de uma entidade onde se cultivava a cultura e o pensamento filosófico, herdado este desde as formações das primeiras Escolas Superiores onde prevaleciam as discussões aristotélicas e agostinianas, adquirindo um caráter de ensino profissionalizante, “na linha do espírito positivista, pragmático e utilitarista” legados do iluminismo. Assim, na França “A universidade napoleônica, além de surgir em função das necessidades profissionais, estrutura-se fragmentada em escolas superiores, cada uma das quais isoladas em seus objetivos práticos”. (ibid., p. 32).

Paralelamente à universidade de modelo napoleônico na França, surge também no século XIX, outro centro universitário que retoma as discussões científicas, as propostas de pesquisa, livre do caráter profissionalizante: a Universidade de Berlim criada em 1810, por Humboldt. 

Mas o fato de uma Instituição de Ensino Superior privilegiar o conhecimento científico e a pesquisa, não a isenta de difundir ideias particularistas dos saberes, talvez não tão excludentes como aquelas instituições que se dedicam à preparação de uma mão-de-obra especializada para o mercado.

A ampliação dos campos dos conhecimentos científico e tecnológico, engendrada pelo desenvolvimento das forças produtivas, a diversificação das áreas dos saberes em decorrência das novas formas de olhar o mundo, as próprias transformações constantes das realidades com as quais nos defrontamos, que nos fazem rever ou mesmo reforçar nossa forma de pensar o futuro da sociedade humana, criam objetos de estudos cada vez mais particularizados. O fato é que tudo isso não pode nos fazer perder de vista a complexidade do mundo.

É o que admite Lefebvre (1987, p. 77-78):

O especialista concentra-se numa ciência ou mesmo, com frequência, numa parte ínfima de uma ciência: a química dos corantes ou o estudo de determinada família de funções. Ignora o resto da ciência e o resto das ciências. A atividade analítica e a divisão parcelar do trabalho fragmentam a ciência e a própria sociedade numa poeira, numa justaposição informe de resultados.

É verdade que essas especializações possibilitaram o progresso das ciências. Mas na mesma medida que se tornou especialista, o homem perdeu sua dimensão de homem integral, impossibilitando-o de compreender o processo geral da realidade à que pertence, uma vez que não considera a si mesmo como um “ser de relações e não só de contatos, [pois] não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE, 1981, p. 39).

O homem na verdade enclausurou-se no seu restrito campo de estudo e de pesquisa. As consequências são observadas por Pinto (1985, p. 259):

À custa de especializar-se no estudo de certo grupo de objetos, o cientista sofre uma deformação intelectual que pode chegar a constituir-se em sério estorvo ao trabalho. Ocorre com frequência que, por excesso de especialização, venha a sofrer de limitações do campo visual, que se estreita, só se deixando sensibilizar pelos fatos ou coisas que dizem respeito ao estudo preferido.

E complementa logo a seguir o mesmo autor:

Não se trata da natural e inevitável diversificação e divisão do trabalho cientifico, e sim da distorção dessa tendência salutar, com estreitamento da acuidade intelectual do homem de ciência; não só para os resultados da pesquisa em outros setores da realidade, mas sobretudo para a compreensão de ordem geral, interpretativa, filosófica, que seus próprios resultados sugerem. Faz-se imprescindível o conhecimento da conexão dialética entre o objeto de estudo e o pensamento que o apreende, não apenas na formação das ideias, mas ainda na dos hábitos mentais que o primeiro determina o segundo.  (ibid., p. 259)

O importante nas observações de Álvaro Vieira Pinto, é que o mesmo se refere explicitamente ao trabalho científico, aos homens de ciência. Portanto a questão não se limita á crítica de Instituições de Ensino Superior que orientam seus cursos de 3º grau, nos parâmetros de um curso profissionalizante, privilegiando o saber fazer. Não é raro encontrarmos mestres e doutores das áreas da Tecnologia, da Saúde, da Administração e do Direito, que agem e pensam como se eles não existissem no mundo, com o mundo e para o mundo.


REFERÊNCIAS

FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. 4.ed., São Paulo: Saraiva, 2003.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 12.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
LEFEVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, 4.ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. 
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6.ed., São Paulo: Cortez, 1991.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.


Leia "O especialista diante da complexidade do mundo" 1 

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Sobre a atualidade política


É preciso entender que, no Brasil e no mundo, a política é ainda e cada vez mais do capital, não do Estado. Isto porque as decisões políticas das sociedades contemporâneas têm mais ligação com o interesse do poder econômico do que com aquele dos próprios governantes.

Por Alysson Leandro Mascaro (*)

I. O capital preside a política

Os Estados, que têm um papel fundamental na reprodução capitalista, ainda que decidam e atuem, têm se revelado, nas últimas décadas, caudatários das decisões imediatas realizadas por grandes grupos econômicos. Assim sendo, as questões mais importantes da política acabam por ser, diretamente, aquelas que interessam ao capital. Quando as decisões são tomadas a favor do povo ou de modo contrário às burguesias, por exemplo, os grandes grupos econômicos e seus interesses têm alta força de contenção e mesmo de sabotagem em relação a tais políticas que lhe sejam opostas.

Neste ano de 2013, o maior exemplo do grande jogo entre a política e a economia, no Brasil, não se deu com as manifestações populares, mas, sim, com a relação entre o Estado brasileiro e o capital, em especial no refluxo das políticas intervencionistas dos últimos anos em favor daquelas marcadamente neoliberais. O caso notório é o da taxa oficial de juros. Após uma queda heroica nos primeiros anos do governo Dilma, a resistência e a pressão contrária do grande capital revelaram-se tamanhas, inclusive em termos de represália política e apatia econômica, que o governo retrocedeu em largos passos, majorando novamente os juros. Junto com a queda de braços em torno da taxa de juros, a depreciação insuficiente do câmbio, mantendo-o ainda elevado, e a insistência em políticas de contenção de gastos públicos para pagamento de juros da dívida são outros momentos cruciais da grande política. Nesse jogo, no qual poucas e enviesadas luzes foram lançadas pelos grandes meios de comunicação de massa e cuja complexidade escapa aos olhos da atenção quotidiana do povo, deu-se mais uma vez a derrota de políticas desenvolvimentistas em favor da retomada dos padrões neoliberais.

Como romper então, definitivamente, com tais padrões neoliberais do atraso? Em todas as sociedades capitalistas, as políticas mais progressistas só conseguem se sustentar com grande mobilização popular. Para isso, é preciso que haja cultura política ativa nas bases sociais e, ainda, mecanismos de informação e de comunicação de massa plurais e arejados. Uma das grandes impossibilidades quanto ao enfrentamento dos interesses dos grandes capitais, no Brasil, se dá justamente porque há uma dinâmica de acoplamento imediato entre as burguesias nacionais e internacionais e os meios de comunicação. Assim sendo, o povo é sempre informado de modo que a boa notícia a ele propagada é, na verdade, contra seus interesses. Enquanto não houver o enfrentamento desse padrão, não há política econômica progressista possível ou sustentável, na medida em que o povo está orientado ideologicamente contra qualquer avanço que seja progressista. Como todo enfrentamento nesse nível demanda ampla mobilização popular, aí está o impasse, justamente por não haver apoio nem alavanca para mudanças. A política progressista, aliás, não deve só contar com o povo, mas, em especial, deve partir dele.

Não há possibilidade de mudanças econômicas e sociais substanciais se não houver mobilização popular, politização das massas e exposição dos conflitos a serem superados. Ao contrário de outras experiências de esquerda da América Latina, os governos Lula e Dilma operam sem a mobilização e a politização do povo. Nesse quadro, até mesmo suas ações positivas não podem avançar. Ainda que louvada como prudência, trata-se de uma política que resulta apenas em ganhos residuais ou apoiada em margens de habilidade pessoal e sorte, pois administra conflitos como concórdia.

As massas, hoje, continuam instrumentalizadas de modo conservador pelos grandes aparelhos ideológicos da sociedade. Como isso não tem sido enfrentado, a política, mesmo quando com laivos ou desejos progressistas, acaba sendo limitada ao talhe que a economia, a cultura e a sociedade promovem como sua média: conservador e/ou reacionário.

II – Crise e política

As manifestações populares são mais um termômetro a repetir que as condições da sociabilidade capitalista são exploratórias e insuportáveis. Os indignados não estão apenas no Brasil. Todas as sociedades capitalistas são deflagradas em conflitos. Revoltas de tipos próximos às havidas no Brasil explodem já há anos na Europa e nos EUA; no mundo árabe o mesmo se deu nos últimos tempos e, na América Latina, também de modo constante em muitos países. Assim sendo, é verdade que as manifestações possam ser pensadas pelo nível local, de problemas específicos, mas, principalmente, devem ser compreendidas por meio das questões gerais, das dramáticas condições de vida sob a sociabilidade capitalista.

As atuais crises do capitalismo não têm sido enfrentadas a partir de suas causas, mas apenas por meio de mudanças superficiais ou cosméticas, quando muito. No mesmo impasse situa-se a contestação à crise. Contra o desemprego, quase sempre não se pede o fim da exploração capitalista, mas sim novos empregos. O imaginário político dos explorados está enredado nos limites do capitalismo, sem forças para superá-lo. Por isso as manifestações são cada vez mais explosivas, massivas, contundentes, mas sem horizontes profundos, sem aglutinação teórica e prática que leve à superação do capitalismo. Por onde elas começam, que é o nível da política imediata, do aumento da passagem do transporte público ou das condições urbanas, em geral é por onde também acabam. É notável e louvável que o povo e as vanguardas dos movimentos de contestação estejam nas ruas. Triste é apenas observar que tem faltado um rasgo ideológico capaz de fazer com que os indivíduos e os movimentos sociais queiram e possam haurir forças de luta estrutural contra o capital.

No nível mundial, o capitalismo está numa espécie de “refluxo do refluxo”, isto é, num movimento agora de contenção da reação que se deu no pós-crise de 2008. Os tempos de intervencionismo começam a minguar em favor de discursos novamente neoliberais. A hegemonia das ideias conservadoras, que sofreu pequeno combate ao tempo de ápice da crise, volta à tona. O reacionarismo cultural campeia. Soma-se à política econômica de guerra norte-americana o seu poder de controle das informações, no que se avista como sendo um processo sem limites.

Quanto às manifestações, que têm o condão de acelerar tempos históricos, juntaram-se às importantes pautas progressistas, ao seu final, outras tantas reacionárias. No entanto, as respostas políticas dadas pelos variados governantes nos planos federal, estaduais e municipais ao tempo das manifestações e posteriormente a elas foram múltiplas e contraditórias, entre repressão e estabelecimento de políticas públicas para um desafogo imediato dos problemas. Mas é preciso lembrar que políticas de caráter progressista são aquelas que tendem a respeitar movimentos sociais e manifestantes, dando vazão a seus apelos, enquanto um cariz conservador e reacionário os nega e os reprime. É por essa métrica que devem ser julgadas as respostas imediatas aos movimentos presentes.

Contudo, mesmo as respostas progressistas – que eventualmente anelem encaminhamentos concretos às demandas dos movimentos e das manifestações –, têm dificuldade em avançar para além do desembaraçar imediato desses problemas sociais. Operando na salvação dos próprios parâmetros de sociabilidade do capital, até as políticas do presente de perspectiva progressista acabam por sustentar a exploração existente, prolongando, ao invés de cessar, a agonia do modo de produção capitalista, agonia esta que se vê, em especial, nos pobres do mundo. Não havendo remendos progressistas que revertam a crise do capital ou que estabilizem o capitalismo, a política transformadora só pode ser, então, aquela que aponta para a superação da sociedade da mercadoria.

III. Ética e legalidade

A reprodução social capitalista investe em afirmações ideológicas de ética e legalidade como se fossem seus padrões universais ou reclames necessários ao seu bom funcionamento. Seu uso é contraditório em seus próprios termos, na medida em que padrões éticos como o do combate à corrupção ou da legalidade como valor moral são impossíveis ao capitalismo, dada a própria natureza da sociedade da mercadoria.

O assim chamado mensalão nem é o maior nem o único caso de corrupção no Brasil. A corrupção está atrelada à base da sociabilidade capitalista. Se o capital compra o trabalho e as vidas das pessoas, ele influencia sobremaneira os trâmites da política. A corrupção, assim, está perpassada por toda a sociedade. Desde os administradores das empresas privadas, passando pela população no geral em pequenas ilegalidades, até chegar ao nível eleitoral e estatal, o capital compra. Não é possível tentar criar espaços éticos parciais, incorruptíveis, em sociedades capitalistas, na medida em que o capital tem por natureza o poder de comprar. Uma ética da não-corrupção econômica só é possível em sociedades economicamente não-exploratórias. As campanhas moralistas de tipo udenista da atualidade, portanto, são cínicas – porque extremamente parciais e escandalosas apenas com os crimes que tenham sido descobertos ocasionalmente e, necessariamente, alheios – e, também, sabidamente alienantes, na medida em que encarnam em pessoas ou casos um problema que é de uma estrutura social, o capitalismo. Como não se mobiliza a sociedade para a superação do mundo do poder do capital, esse círculo de corrupção e posteriores expurgos parciais moralistas é vicioso, além de muito danoso, no final das contas, aos próprios explorados do mundo.

No que tange ao Brasil, afirma-se cada vez mais o controle ideológico da sociedade, tanto na cultura e na religião mas, em especial, nos aparelhos de comunicação de massa, que pautam de modo conservador a política e os valores. Nesse quadro, o reclame da ética é, de modo absoluto, um jogo de manipulações, sombras e luzes dos grandes maquinários da construção dos valores e referências da sociedade.

A mesma impossibilidade da ética afirmada e exigida se dá no que tange à submissão das ações econômicas e políticas a uma moralidade sustentada juridicamente. Sobre as revelações acerca da espionagem dos EUA contra o Brasil e vários países do mundo, eis mais uma prova de que o poder econômico não tem limites. Nem o direito internacional nem uma pretensa dignidade da inviolabilidade da vida privada podem a ele resistir. Não há, juridicamente ou moralmente, o que faça parar o poder do capital e de sua força militar, de tal sorte que os EUA nem pedem desculpa nem se predispõem a mudar seu comportamento. Isto porque quem pode manda. Os EUA, com seu complexo governamental industrial-militar, constituem, sustentam e alimentam a exploração capitalista sobre o mundo. Não há e é impossível que haja qualquer ética estrutural na política mundial do capital.

IV. O plano eleitoral

O ano de 2014 é mais um no qual a batalha política será jogada num campo reativo. No plano nacional, a política confinou-se a ser refém tanto das pautas dos meios de comunicação de massa conservadores quanto, em especial, de grandes estratégias de financiamento econômico privado. Quase sempre as eleições exigem posterior satisfação ou pagamento de financiadores, atrelando todo jogo político aos interesses do capital. A democracia, em sociedades capitalistas, opera como uma máquina de metrificação de opiniões já consolidadas, entregando justamente o que se espera, de modo reativo, sem maiores convencimentos ou aberturas de consciência política. Se a sociedade é preconceituosa, entrega-se então justamente o preconceito. Se o povo é desconhecedor das reais estruturas da política e da economia, opera-se exatamente nesse nível, fazendo marketing a partir dos estágios dados da ignorância. Trata-se de um nível baixo e rasteiro no qual a vida política se resume a fazer pedalar uma bicicleta já em movimento a fim de que não caia, mas sem jamais perguntar para onde se está indo ou se se pode ir com outro meio de transporte.

Tal lógica perpassa desde as grandes eleições majoritárias nacionais até as municipais. Em todo o mundo, e o Brasil e os EUA sendo casos exemplares mas não únicos, o capitalismo atrela a consulta individual para escolha de ocupantes de cargos públicos – isso a que chama de democracia e eleição – a um rígido controle ideológico e a uma lógica que faz com que só se ganhe se financiado pelos capitalistas, devendo então a posterior política ser jogada e devolvida em favor destes. As eleições são a administração da chancela, pelo povo, do domínio do capital. Mercado, Dinheiro, Estado, Ordem, Direito, Democracia, Liberdade, Imprensa, Religião, Homem: enfileira-se o um do capital.

* Com alterações, este artigo é, originalmente, entrevista concedida à imprensa paulista – O Regional, edição de 01°/01/2014.

(*) Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e da Pós-Graduação em Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, além de fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin e o mais recente Estado e forma política, pela Boitempo. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.


FONTE: Controvérsia

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Educação e consciência crítica


Por Frei Betto



O bloco socialista se desintegrou antes de completar um século. A União Soviética se esfacelou e os países que a integravam adotaram o capitalismo como sistema econômico e sinônimo de democracia.

Tudo aquilo que o socialismo pretendia e que, em certa medida, alcançara – redução da desigualdade social, garantia do pleno emprego, saúde e educação gratuitos e de qualidade, controle da inflação etc. – desapareceu para dar lugar a todas as características desumanas do neoliberalismo capitalista: a pessoa encarada não como cidadã, e sim como consumista; o ideal de vida reduzido ao hedonismo; a exploração da força de trabalho e a apropriação privada da mais-valia; a especulação financeira; a degradação da condição humana através da prostituição, da indústria pornográfica, da criminalidade e do consumo de álcool e drogas.

É dever de todos que se consideram de esquerda se perguntar quais as causas do desaparecimento do socialismo na Europa. Há um amplo leque de causas, que vão da conjuntura econômica de um mundo bipolar hegemonizado pelo capitalismo às pressões bélicas em decorrência da Guerra Fria.

Entre tantas causas destaco uma de caráter subjetivo, ideológico: o papel do educador na formação de seus alunos.

Devo dizer que, antes da queda do Muro de Berlim, tive a oportunidade de visitar China, Tchecoslováquia, duas vezes a Polônia e a Alemanha Oriental, e três a União Soviética.

O socialismo europeu cometeu o erro de supor que seriam naturalmente socialistas pessoas nascidas em uma sociedade socialista. Esqueceu-se da afirmação de Marx de que a consciência reflete as condições materiais de existência, mas também influi e modifica essas condições. Há uma interação dialética entre sujeito e realidade na qual ele se insere.

Em primeira instância, e não em última, nascemos todos autocentrados. "O amor é um produto cultural”, teria dito Lênin. Resulta do desdobramento de nosso ego, o que se obtém através de práticas que infundam valores altruístas, gestos solidários, ideais coletivos pelos quais a vida ganha sentido e a morte deixa de ser encarada como fracasso ou derrota.

Segundo Lyotard, o que caracteriza a pós-modernidade é não saber responder a questão do sentido da vida. Este o papel do educador: não apenas transmitir conhecimentos, facilitar pedagogicamente o acesso ao patrimônio cultural da nação e da humanidade, mas também suscitar no educando o espírito crítico, a atitude ética, a busca do homem e da mulher novos em um mundo verdadeiramente humanizado.

Ora, isso jamais será possível se não se propicia ao magistério um processo de formação permanente. É um equivoco julgar que professores são todos imbuídos de valores nobres. Nenhum de nós é totalmente invulnerável às seduções capitalistas, aos atrativos do individualismo, à tentação de acomodamento e indiferença frente ao sofrimento alheio e às carências coletivas.

Estamos todos permanentemente sujeitos às influências nocivas que satisfazem o nosso ego e tendem a nos imobilizar quando se trata de correr riscos e abrir mão de prestígio, poder e dinheiro. A corrupção é uma erva daninha inerente ao capitalismo e ao socialismo. Jamais haverá um sistema social no qual a ética se destaque como virtude inerente a todos que nele vivem e trabalham.

Se não é possível alcançar a utopia de ética na política, é preciso conquistar a ética da política. Daí a importância de uma profunda reforma política. Criar uma institucionalidade política que nos impeça "cair em tentação” quanto à falta de ética.

Isso só será possível em um sistema no qual inexista a impunidade e o desejo de ser corruptor ou corrompido não seja alcançado. Tal objetivo não se atinge por meio de repressão e penalidades, embora elas sejam necessárias. O mais importante é o trabalho pedagógico, a emulação moral, tarefa na qual os professores desempenham papel preponderante por lidarem com a formação da consciência das novas gerações.

O professor deve ter atitudes pautadas pela construção de uma identidade humana na qual haja adequação entre essência e existência. Saber ministrar sua disciplina escolar contextualizando-a na conjuntura histórica em que se insere.

O papel número um do educador não é formar mão de obra especializada ou qualificada para o mercado de trabalho. É formar seres humanos felizes, dignos, dotados de consciência crítica, participantes ativos no desafio permanente de aprimorar a sociedade e o mundo em que vivemos.


Frei Betto é escritor, autor de "Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.


FONTE: Adital

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

As ruas voltam a se manifestar


Por Pe. Alfredo J. Gonçalves


O ano de 2014 promete surpresas, algumas inesperadas, outras nem tanto. Já em junho de 2013 manifestantes de vários movimentos sociais, instituições e organizações de base, com boa predominância de jovens, usaram as ruas e praças de todo o território nacional como caixa de ressonância, seja para o descontentamento e mal-estar generalizados, seja para suas reivindicações. Como nos tempos do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, voltaram a pintar a cara com as cores da bandeira nacional, manifestando, entre outras coisas, um nacionalismo nem sempre isento de outros "ismos”, mas inquieto por mudanças nos rumos da política econômica.

Agora, às vésperas do Carnaval e da Copa do Mundo, o fenômeno volta a desfilar por algumas cidades e a preocupar os governos municipal, estadual e nacional. Ontem como hoje, um duplo aspecto caracteriza as manifestações: por uma parte, prevalece uma crítica insistente ao padrão Fifa para estádios de futebol e eventos relacionados à Copa; por outra, a exigência de que o mesmo padrão se estenda aos direitos básicos da população brasileira. Por outro lado, em ambos os casos, a Internet tem servido de meio para a comunicação e a convocação. Trata-se, portanto, de uma geração conectada virtualmente, mas, ao mesmo tempo, conectada aos problemas da sociedade brasileira. O que, de uma forma ou de outra, desmente a cômoda afirmação de que "os jovens hoje não querem nada com nada”. Querem algo, sim, e o querem de forma inclusiva e transparente, aberta e participativa. Em outras palavras, colocam sobre a mesa a própria concepção de democracia.

A verdade é que o desenvolvimento do país, desde longa data (para não dizer desde 1500), sofre estruturalmente de um mal crônico. Em tempos de "vacas magras”, como bem sabemos, os extratos mais pobres devem pagar a conta, através de impostos, taxas, etc; em tempos de "vacas gordas”, os benefícios do progresso e do crescimento se acumulam em poucas mãos. Em termos mais concretos, privatize-se a riqueza, ao mesmo tempo em que, na base da pirâmide, socializa-se a pobreza, a exclusão social e a miséria. Crescimento histórica e estruturalmente viciado que gera, simultaneamente, concentração de renda e aprofundamento da desigualdade social. Resulta que, a democracia, neste país (e em tantos outros) mexe com as águas da política, criando ondas aparentemente fortes, mas superficiais, porém deixa intactas as correntes subterrâneas da estrutura da economia.

Desse estado de coisas, histórico e persistente, resulta o descontentamento e as mobilizações sociais, contemporaneamente causa e efeito de uma consciência crescente em determinados setores da população. Resta sempre a pergunta: até que ponto a onda de euforia relacionada a Copa do Mundo traz benefícios reais e duradouros para a população de baixa renda? Formulada de outra maneira: no apagar das luzes da decisão final, independentemente de quem seja o novo campeão do mundo, sobrarão algumas migalhas para os pobres ou estes "ficarão a ver navios”, como dizem nossos irmãos de língua portuguesa no outro lado do Atlântico? Restaremos somente com a possibilidade de mais uma estrela na camisa da seleção brasileira? Isso para sequer levar em conta uma verdadeira e profunda distribuição de renda!

Essas questões nada têm de mera retórica. Expressam um desejo vivo e consciente de participar na divisão do bolo feito a múltiplas mãos, num país que vem dando sinais de vigor e crescimento econômico. Crescimento para quem? – perguntam com razão os jovens pelas ruas e praças! A verdadeira energia das manifestações se revela inversamente proporcional à capacidade do governo de promover políticas públicas voltadas para as necessidades básicas do país. Não basta desempenhar o papel de bom anfitrião da Copa do Mundo (2014) ou das Olimpíadas (2016), como um país que faz o "dever de casa” diante da comunidade internacional, mas esquece os compromissos assumidos internamente, com os cidadãos brasileiros, no decorrer da campanha eleitoral e em outras ocasiões.

E aqui entra em cena o núcleo do problema, o verdadeiro nó da questão. Do ponto de vista político e econômico, o que está em jogo? Um projeto de governo que leve em conta a grande lacuna das reformas necessárias e urgentes, ou um simples projeto de poder, de olho no processo eleitoral que se seguirá à Copa do Mundo? Como diz o provérbio, privilegiamos as futuras gerações (a médio e longo prazos), ou às próximas eleições (a curto prazo)? Chegamos, assim, a outro entrave da trajetória político-econômico brasileira: enquanto os políticos em geral (salvo raras e boas exceções) trabalham para a reeleição, os partidos a que pertencem trabalham para manter-se no poder. Um planejamento de longo alcance, independentemente de quem ganhe ou perca as eleições, parece estar fora dos programas partidários. Mais importante é conquistar o maior número de cadeiras na Câmara e no Senado, o maior numero de prefeituras ou governos estaduais.

Daí a miopia ou a cegueira da visão político-econômica. Em lugar de levar em conta as necessidades mais urgentes da população, e a partir de tais lacunas desenhar um plano de governo, prevalece os interesses pessoais, partidários ou corporativistas. Os currais eleitorais e as oligarquias se revelam tão vivos e ativos quanto nos tempos obscuros do passado. Se a tudo isso acrescentamos o grau de corrupção, o tráfico de influência e o apadrinhamento nos meios públicos, chegamos a uma política deveras enferma, morbidamente doentia. Somente a voz das ruas, mesmo com todas as suas falhas, incongruências e contradições, será capaz de  mudar esse quadro nada animador. Quando as ruas falam, resta-nos a sabedoria do silêncio, da escuta e do discernimento. O que não se pode é, pura e simplesmente, ignorá-las, sob pena de cavar a própria sepultura!


FONTE: Adital

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Saiba o que tem na sua comida e sobreviva se for capaz


A indústria da alimentação deverá faturar em 2014 US$5,9 trilhões, segundo estimativa da agência britânica dedicada à pesquisa sobre consumo e marcas – The Future Laboratory.

Por Najar Tubino



O mercado global de snacks (bolinhos, biscoitos, salgadinhos) deverá movimentar US$334 bilhões.

As vendas de chocolates e confeitos vão faturar US$170 bilhões.

O Brasil consumiu em 2012, 11,3 bilhões de litros de coca-cola, empresa que faturou US$48,02 bilhões, e lucrou US$ 9 bilhões.

Na pesquisa do IBGE comparando 2002-2003 com 2008-2009, o consumo anual de arroz das famílias caiu 40,5% — de 24,5kg para 14,6kg — e o de feijão caiu 26,4% — de 12,4 para 9,1kg.

Os refrigerantes do tipo cola cresceram 39,3% de 9,l litros para 12,7 litros.

No Brasil, 48,5% da população está acima do peso, são 94 milhões de pessoas.

Entre as crianças de 5 a 9 anos o aumento da obesidade multiplicou por quatro nos meninos (de 4,1% para 16,6%) e por cinco entra as meninas – de 2,4% para 11,8%.

Uma em cada 10 crianças abaixo dos seis anos já apresenta sobrepeso.

Nos Estados Unidos 35,7% da população, ou seja, mais de 135 milhões de pessoas são obesas, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) – 17% são jovens.

No mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde o número já atinge 1,5 bilhão de pessoas.

Na China, o índice de obesidade duplicou nos últimos 15 anos, na Índia subiu 20%.

No Brasil, segundo um estudo da Universidade de Brasília, o SUS paga R$488 milhões por ano para tratar doenças ligadas ao aumento do peso.

Moderno doentio 

As causas citadas para explicar esta tragédia humana estão associadas à mudança tecnológica, ao estilo de vida das metrópoles, aos hábitos sedentários, a questão prática da vida atual, não deixa tempo para cozinhar, comer em casa, entre outras tantas.

É óbvio que a alimentação está no centro desse problema, que há muito tempo deixou de ter uma abordagem cultural, e precisa ser encarado como uma mudança social, política e econômica.

Henry Kissinger, figura famosa na política mundial, dizia que quem domina a comida domina as pessoas.

Não incluíram no pacote as doenças crônicas resultantes do tipo de comida difundida pelo mundo como algo “moderno”, como o hambúrguer e o refrigerante cola – diabetes em adultos, cardiovasculares, câncer e hipertensão, apenas para citar as campeãs nas estatísticas.

A OMS informa que 2,8 milhões de pessoas morrem em consequências de doenças associadas ao sobrepeso.

E outras 2,2 milhões morrem por intoxicações alimentares, resultante de contaminações de vírus, bactérias, micro-organismos patogênicos e resíduos químicos.

Neste capítulo específico a história é longa.

Um dossiê da Autoridade de Segurança Alimentar e Econômica, de Portugal, usando os dados da União Europeia, contabiliza 100 mil compostos químicos usados correntemente no mundo.

Na União Europeia eles registram 30 mil, produzidos a uma média de uma tonelada por ano, sendo que a metade tem potenciais efeitos adversos à saúde.

“Poucos foram estudados em profundidade suficiente de modo a permitir as estimativas de riscos potenciais de exposição, sobretudo aos seus efeitos de longo prazo, quanto à toxicidade ao nível da reprodução ou do sistema imunológico ou ação carcinogênica” [diz o relatório].

A contaminação pode ocorrer no solo, durante o plantio, no tratamento da planta, depois na colheita e armazenagem, também dos processos industriais, da queima de substâncias que se transformam e pela incorporação de contaminantes e aditivos em alimentos:

“- A prevalência de doenças ou a morte prematura causada por químicos presentes nos alimentos é difícil de demonstrar, devido ao período de tempo, geralmente longo, que decorre entre a exposição a estes agentes e o aparecimento dos efeitos”, registra o documento.

Mentira consistente 

O problema é que a comida moderna, saborosa, suculenta, cheirosa vendida pela publicidade no mundo inteiro é uma mentira.

Todos os aspectos citados, incluindo ainda a cor, o tempo de vida na prateleira, a viscosidade, o brilho, o sabor adocicado, ou então o salgadinho bem sequinho, todos são resultado da aplicação de uma lista quase interminável de aditivos químicos.

Inclusive registrada internacionalmente por códigos numerados e divulgada pelo Codex Alimentarius, da ONU.

Por exemplo, o conservante nitrito de sódio é o E-250 e o adoçante artificial acessulfamo-K é o E-950.

Antes de avançar no assunto, um alerta da ONU sobre o uso de componentes químicos na vida moderna:

“O sistema endócrino regula a liberação de certos hormônios que são essenciais para as funções como crescimento, metabolismo e desenvolvimento. Os CDAs, desreguladores endócrinos, podem alterar essas funções aumentando o risco de efeitos advesos à saúde. Os CDAs podem entrar no meio ambiente através de descargas industriais e urbanas, escoamento agrícola e da queima e liberação de resíduos. Alguns CDAs ocorrem naturalmente, enquanto as variedades sintéticas podem ser encontradas em agrotóxicos, produtos eletrônicos, produtos de higiene pessoal e cosméticos. Eles também podem ser encontrados como aditivos ou contaminantes em alimentos”.

O alerta das Nações Unidas é no sentido de realizar “urgentemente” novas pesquisas para avaliar o impacto dos também chamados disruptores endócrinos.

Ocorre que alguns químicos sintéticos espalhados mundialmente têm uma estrutura molecular parecida com os hormônios naturais, como o estrógeno e a testosterona.

Os hormônios funcionam como mensageiros da herança genética, e os químicos interferem nesse processo, alterando o conteúdo da mensagem.

Em 1996, um grupo de pesquisadores norte-americanos – Theo Colborn, Diane Dumanoski e John Peterson Myers – lançou o livro “O Futuro Roubado”, tratando dessa temática, com um apêndice na edição brasileira de José Lutzenberger.

No Brasil o livro foi lançado em 2002.

Prático e barato 

O problema é que a indústria se interessa por custo/benefício. Os aditivos dão consistência aos alimentos, não deixam a mostarda e a maionese virar uma gororoba, a carne e os produtos curados, como salsichas, mortadela, salames, perderam a cor vermelho-rosada.

Os sorvetes não ficam com espuma, as sopas e caldos tem um cheiro maravilhoso.

Fiquei enjoado de tanto ler sobre aditivos químicos nos últimos tempos. O mais impressionante, dos mais de 40 trabalhos que repassei, é a declaração da supervisora de marketing, da Química Anastácio (SP), para a revista Química e Derivados:

“O nitrito de sódio é o principal aditivo usado em produtos cárneos, é o agente conservante de todos os produtos curados, promove a coloração vermelho-rosada nas curas e nos crus e o róseo avermelhado nos cozidos, além do sabor característico. Realmente esses produtos são considerados carcinogênicos, porém os grandes frigoríficos os utilizam pelo fato de não ter substituto no mercado. Mas devem ser usados com responsabilidade, respeitando os limites máximos de 0,015g por 100g e 0,03g por 100g, nos casos do nitrito e nitrato de sódio”, disse Alessandra Fernandes Guerra.

A Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (PROTESTE) tem trabalhos que mostram a capacidade dos nitritos e nitratos de sódio de reagir com certas substâncias presentes nos alimentos, que são as aminas, e se transformam em nitrosaminas, potencialmente cancerígenas.

Danos cerebrais

Uma pesquisa de Sandrine Estella Peeters, da COPPE-UFRJ aborda o tema de como os aditivos químicos afetam a saúde.

Hiperatividade em crianças, citado como consequência de corantes em alimentos, além de dor de cabeça crônica.

Urticária, erupção da pele, câncer em animais, além de riscos de longo prazo de causar danos cerebrais. Este é o caso do glutamato de sódio, muito conhecido nos temperos, mas é utilizado em mais de cinco mil produtos.

Considerado como um agente capaz de produzir efeito neurotóxico. Em outra pesquisa, da Universidade Cândido Mendes, Roseane Menezes Debatin, tese de mestrado, comenta o seguinte sobre o glutamato de sódio:

“É um sal composto de uma molécula de ácido glutâmico ligada ao sódio. Tem um sabor adocicado, é um grande estimulante do paladar, suprimindo os gostos desagradáveis, levando a uma maior consumo de produtos industrializados. Usado em caldos, biscoitos, snacks, miojos, batata frita. O ácido glutâmico está envolvido na ativação de uma série de sistemas cerebrais, concernentes à percepção sensorial, memória, habilidade motora e orientação no tempo e espaço. Existem vários trabalhos científicos comprovando a neurotoxicidade do glutamato, principalmente na região do hipotálamo e no sistema ventricular”.

Nos Estados Unidos, o glutamato foi retirado dos alimentos infantis em 1969. A Ajinomoto maior indústria do ramo — 107 fábricas em 23 países — que comercializa o produto informa que o consumo no mundo cresce 5% anualmente.

Lista interminável 

Os antioxidantes, usados na conservação, interferem no metabolismo, produzem aumento de cálculos renais, ação tóxica sobre o fígado e reações alérgicas, conforme a pesquisa da COPPE.

Os conservantes, como o ácido benzoico, um dos mais usados, produzem irritação da mucosa digestiva, outros produzem irritações nas células que revestem a bexiga, podendo atuar na formação de tumores vesicais.

As gorduras hidrogenadas provocam o risco de doenças cardiovasculares e obesidades. E os adoçantes artificiais, substitutos do açúcar, estão relacionados com a diabete, obesidade e o aumento de triglicerídeos (gordura na corrente sanguínea).

Sobre os adoçantes, o professor e doutor em ciência de alimentos da Unicamp, Edson Creddio, comenta o seguinte:

“Os adoçantes são medicamentos que devem ser usados por pessoas com diabetes e hipoglicemia e não por todas as pessoas, inclusive crianças, como se fossem totalmente isentos de risco. Esta substância é vista pelo público leigo como panaceia passada pela mídia com a imagem que levará o usuário a ter um corpo perfeito”.

Os adoçantes artificiais mais usados são a sacarina, que é 500 vezes mais potente que o açúcar, o aspartame, como diz o professor, que é 150 a 200 vezes mais doce, além do ciclamato e o acessulfamo-k, também muito mais doce que o açúcar.

Estão presentes nos refrigerantes, bebidas isotônicas, sucos preparados, e demais industrializados.

Sódio em demasia 

Fiz uma relação com 14 grupos de aditivos mais usados nos alimentos consumidos atualmente. Os conservantes aumentam o prazo de validade, os estabilizantes mantêm as emulsões homogêneas vamos dizer, os corantes acentuam e intensificam a cor natural para melhorar a aparência e fazer o consumidor acreditar que está levando algo novíssimo.

Os antioxidantes evitam a decomposição, os espessantes dão consistência ao alimento e os emulsificantes aumentam a viscosidade do produto.

Os agentes quelantes protegem os alimentos de muitas reações enzimáticas e os flavorizantes tem o papel de realçar o odor e o sabor dos alimentos.

Já os edulcorantes são usados em substituição ao açúcar e os acidulantes utilizados para acentuar o sabor azedinho do alimento.

Os humectantes mantêm a umidade e a maciez, os clarificantes retiram a turbidez, os agentes de brilho mantém a aparência brilhante e os polifosfatos são usados para reter a água, no caso dos congelados, como o frango e nos produtos curados.

No Brasil, a ANVISA desde 2011 negocia com a indústria de alimentos para diminuir a quantidade de sódio dos alimentos industrializados.

Não há nem meta nem prazo para chegar a um nível aceitável.

Numa pesquisa realizada em 2011, com 496 produtos das regiões nordeste, sudeste e sul foram encontradas entre produtos de diferentes empresas quantidades 10 vezes maiores nos queijos tipo minas frescal, parmesão e ricota.

No entanto, as menores diferenças na quantidade usada de sódio entre os mesmos produtos de diferentes empresas chegaram a 40% no caso das mortadelas, macarrão instantâneo e bebidas lácteas.

O teor de sódio mais elevado foi registrado no queijo parmesão inteiro e ralado, macarrão instantâneo, mortadela, maionese e biscoito de polvilho.

Informa a ANVISA: o sódio é um constituinte do sal, equivalente a 40% da sua composição, sendo um nutriente de preocupação para a saúde pública, que está diretamente relacionado ao desenvolvimento de doenças como hipertensão, cardiovasculares e renais.

Na tabela de informação nutricional dos alimentos, que deve estar no rótulo, consta a quantidade de sódio. Para ser isento não pode ter mais de 5mg por 100g de alimento.

Se tiver 40mg na mesma proporção é muito baixo e 120mg é considerado baixo.

Na pesquisa da ANVISA o teor médio de sódio do macarrão instantâneo foi de 1.798mg por 100g, da mortadela foi de 1.303mg por 100g e o da maionese 1.096mg por 100g.


FONTE: Controvérsia

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Vai ter copa. Só não para você





Por Edemilson Paraná*


Ingressos caros, gasto público com lucro privado, violações aos direitos humanos e ataques à democracia. Esse é o grande legado da realização da Copa do Mundo no Brasil. Revertê-lo em ganhos de mobilização política e transformação social é possível. 

Evento privado, gasto público, lucro privado

A “copa das copas” vai acontecer, já aconteceu, já está acontecendo. Pelo menos para a Fifa. Uma projeção feita pela BDO (empresa de auditoria e consultoria especializada em análises econômicas, financeiras e mercadológicas), aponta que a Copa do Mundo de 2014 no Brasil vai render para a entidade, que supostamente não tem fins lucrativos, a maior arrecadação de sua história: nada menos do que US$ 5 bilhões (cerca de R$ 10 bilhões). O valor é 36% superior em comparação ao montante obtido com o Mundial da África do Sul (US$ 3.655 bilhões), em 2010, e 110% maior do que o arrecadado na Copa de 2006, na Alemanha, que rendeu US$ 2.345 bilhões. Os números foram confirmados pelo secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, em entrevista coletiva realizada em junho de 2013.

Os governos tem feito sua parte para ajudar…os cartolas. Com isenção de cerca R$ 1 bilhão em impostos, o Mundial no Brasil já um ótimo negócio para a entidade. Ao todo, cerca de R$ 28 bilhões de reais serão gastos em obras de infraestrutura e construção e reforma de estádios para receber o torneio. Desse montante, quase R$ 8 bilhões estão sendo gastos em estádios, valor cuja metade é financiada por bancos federais. Apenas R$ 820 milhões gastos nos estádios foram financiados com recursos privados (segundo valores da CGU). O restante dos recursos foi aportado por governos locais, como é o caso de Brasília, onde o valor do Mané Garrincha passou de R$ 1,2 bilhão.

Cerca de um terço do valor total das obras (R$ 8,7 bilhões) está sendo financiado por bancos federais – Caixa Econômica Federal, BNDES e bancos estaduais. Boa parte desses empréstimos é tomada pelos próprios governos estaduais, sozinhos ou em parcerias com o setor privado, embora alguns empréstimos também sejam contraídos por entes privados (como os mais de R$ 400 liberados pelo BNDES para o Corinthians construir o Itaquerão). E antes que surja o papo de que o dinheiro desses bancos é privado, lembremos que o BNDES, por exemplo, é uma empresa pública. Recebe dinheiro do Fundo de Amparo ao Trabalhador para emprestar em condições privilegiadas a empresários. O fundo é formado por parte da receita de um tributo, a contribuição ao PIS/Pasep, cujo custo é incorporado pelas empresas aos preços dos bens pagos pelos consumidores.

As obras consumirão R$ 6,5 bilhões do orçamento federal e R$ 7,3 bilhões de governos locais (estaduais e municipais). Dos R$ 28,1 bilhões totais, apenas R$ 5,6 bilhões serão recursos privados (que se concentram principalmente nos aeroportos). Balela dizer que não há dinheiro público na jogada. O preço dos ingressos todos já conhecemos, as obras de infraestrutura urbana, propagandeados como o grande legado do evento, poucos viram até agora.

Em resumo, a lógica é bastante simples. A Fifa faz uma festa privada e se você quiser sediá-la precisa aceitar as condições da entidade. A verdade é que não há nenhum comprometimento com o desenvolvimento econômico, esportivo ou humano dos países que sediam grandes eventos esportivos.

Não por acaso, a Suécia – que notoriamente tem problemas sociais menos agudos do que os brasileiros – acaba de negar a oportunidade de uma candidatura para sediar as Olimpíadas de 2022. A justificativa é assustadoramente simples: o país tem outras prioridades como habitação, desenvolvimento e previdência social.

Gastos incalculáveis: o retrocesso nos direitos humanos

Não bastasse a matemática contábil básica ignorada pelos defensores dos grandes eventos, um conjunto de abusos e violações aos direitos humanos completa o pacote de “gastos” sociais incalculáveis.

Um mapeamento divulgado na Suíça pela Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas, no final de maio passado, calcula que mais de 200 mil pessoas estão sendo despejadas arbitrariamente de suas casas por causa de obras para os preparativos da Copa em todo o Brasil. Durante os preparativos de mega-eventos esportivos estima-se que 15% dos moradores de Seul foram expulsos de suas casas e, na África do Sul, 20 mil pessoas foram despejadas.

Além das milhares de famílias desalojadas, algumas outras pagaram com a vida o preço de obras superfaturadas, feitas às pressas, com baixa remuneração, cargas de trabalho extenuantes e pouca fiscalização. De junho de 2012 a dezembro de 2013, o Brasil registrou sete mortes relacionadas à preparação do país para a Copa do Mundo. Número mais de três vezes maior do que o registrado na África do Sul.

Contra a revolta social produzida por tais abusos, muita repressão. Além de outros milhões de reais gastos com aparato de repressão adicional (bombas de gás, spray de pimenta, armas e balas de borracha, equipamentos de dispersão, entre outros), uma tropa de choque especial com 10 mil homens, especialmente recrutados para isso, será responsável por agir em caso de manifestações nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo de 2014.  Além das tropas, robôs irão monitorar por imagens a movimentação de pessoas nos entornos dos estádios, e a vigilância a aplicativos de celulares e mídias sociais já está em andamento. O Exército está a postos e também se prepara para a necessidade de ser convocado a conter as manifestações. O (não) preparo dessas “tropas” para lidar com seus próprios cidadãos exercendo seu livre direito de manifestação, como se fossem inimigos da pátria, já é amplamente conhecido.

No apagar das luzes de 2013, o Ministério da Defesa baixou uma portaria normativa que “Dispõe sobre a Garantia da Lei e da Ordem” pelas Forças Armadas. Entre outras coisas o documento aponta a necessidade de conter “sabotagem nos locais de grandes eventos” e aponta como “força oponente” os “movimentos ou organizações” que causem dificuldades no objetivo de “manter ou restabelecer a ordem pública”. No Congresso, tramitam mais de 13 propostas que “normatizam” manifestações. As propostas, muitas flagrantemente inconstitucionais, tratam de criminalização, aumento de penas, tipificação de terrorismo, entre outros ataques ao direito de organização social. Além da Lei Geral da Copa, um abuso em si, que já revoga vários direitos democráticos, tramita um Projeto de Lei no Senado, que, entre outras coisas, proíbe greves durante o período dos jogos e inclui o “terrorismo” no rol de crimes com punições duras e penas altas para quem “provocar terror ou pânico generalizado”.

Ganhos inesperados: articulação e mobilização social

Ingressos caros e avanço do processo de elitização do futebol no Brasil, gasto público com lucro privado, violações aos direitos humanos e ataques à democracia. Como pano de fundo desse cenário, um país desigual, com saúde e educação precarizadas e péssimos serviços de mobilidade urbana. O resultado não poderia ser outro que não revolta social.

O combate dos governos e seus aliados às manifestações é de ruborizar pela falta de consistência política. O argumento de que “os protestos causarão prejuízos ao Brasil” até faria algum sentido se os vultosos lucros com a realização do evento não fossem parar no bolso de meia dúzia de gestores, empresários e cartolas em detrimento dos altos preços cobrados de torcedores e contribuintes.

A ideia de que o “movimento é partidário e, portanto, orquestrado para prejudicar a reeleição da presidenta Dilma” desmonta diante de uma primeira visita a qualquer um dos protestos: há tudo e todos, diferentes movimentos e colorações ideológicas, trata-se de um espaço amplo, aberto, caótico e fragmentado. Estrutura-se, pois, em anseios legítimos da população brasileira, que se expressam da maneira possível diante do atual quadro de esvaziamento representativo. Se prejudicam a imagem de governos, o problema está, obviamente, nas medidas que estes resolveram adotar à revelia do que precisa e pede o país neste momento, à revelia de nossas reais prioridades.

Chega a ser irônico ver um governo dirigido por um partido que até ontem se apresentava como de esquerda e nacionalista se mobilizar de modo tão uníssono – e porque não dizer, desesperado – em defesa da submissão do Estado e da sociedade na garantia dos lucros de uma instituição privada internacional que concorre na Suíça ao prêmio Public Eye Awards como a pior companhia do mundo, honraria já concedida à “benévolas” Vale do Rio Doce, Shell e o Banco Goldman Sachs, um dos responsáveis pela estouro da crise financeira mundial em 2008.

Por fim, o argumento de que os protestos são “autoritários” é risível diante do fato de que em nenhuma etapa do processo – a eleição do Brasil como sede, a aprovação da abusiva Lei Geral da Copa ou a remoção de centenas de milhares de famílias – a população foi consultada. Tudo foi decidido, para variar, entre as cúpulas do poder dominante.

As preocupações dos governos e seus partidos dirigentes, no entanto, tem razão de ser. A revolta crescente aos poucos se organiza politicamente e procura, sim, os responsáveis pelos abusos. Já em 2013 a Ancop – Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa – cumpriu um papel importante nas manifestações de junho lançando o importante questionamento “Copa para quem?”. A articulação, um dos catalizadores das manifestações à época com atos em todo o Brasil, reúne comitês nas 12 cidades-sede da Copa, que por sua vez agregam movimentos sociais, universidades e entidades de sociedade civil que lutam contra as violação de direitos humanos. Poucos ganhos podem ser maiores para uma sociedade do que os de conscientização e organização política em defesa de seus direitos. Esse pode ser o nosso maior legado.

Desde o ano passado, essa articulação vem se ampliando. O debate a respeito dos abusos da realização da Copa do Mundo no Brasil, aos poucos, se desloca ao centro da agenda política. No bradar de vozes opositoras, que já se autonomizaram em relação à ação inicial dos comitês, uma consigna se destaca mais do que outras, para o pânico do andar de cima: “Não vai ter copa”.

Não vai ter copa?

Tudo somado, os gastos envolvidos, os interesses em jogo e o aparato de repressão mobilizado, é difícil que não haja. Trata-se de ano eleitoral, de uma das Copas mais lucrativas da história e da subjetividade de um país que passou – também graças a insistente propaganda oficial ao longo de anos – a enxergar-se como o país do futebol. Vai, sim, ter copa. Só não para você.

Para quem ela será já sabemos. Sabemos também que o preço será alto para todos os lados: governos, empresários, torcedores e manifestantes. Como o cenário não é favorável para nenhuma mudança de rumos na organização do evento, engana-se quem acha que a tensão social diminuirá até lá. Mas será que a palavra de ordem “Não vai ter copa” é a melhor nesse momento?

Particularmente, creio que não. A consigna “copa para quem?” denuncia de modo mais claro os problemas que apontamos, articulando-o a outras dimensões de nossas desigualdades estruturais, o que abre cenário para a politização sistêmica desse processo, mesmo após a finalização do evento.

“Não vai ter copa”, em contrapartida, anima as manifestações para um objetivo que não parece muito crível no momento, encaminhando as reivindicações para uma derrota. Derrotas, sabemos, tem um impacto consideravelmente negativo em um processo de lutas sociais, já que é de vitórias e conquistas, ainda que pontuais, que se alimenta um ascenso político dessa natureza. Denunciar de modo firme e claro os desmandos da realização do evento, desgastando e constrangendo os responsáveis e privilegiados por tais abusos, já aponta uma importante vitória parcial, que pode ser ampliada posteriormente em articulação com outras denúncias, reconfigurando com isso a conjuntura da política brasileira. Peçamos hospitais e escolas padrão Fifa, moradias para os Sem Teto, transparência nos investimentos para a Copa, denunciemos a corrupção, a suspensão da liberdade de manifestação durante a Copa. Dessa forma, temos mais possibilidades de obter algumas vitórias; a maior delas, sem dúvida, será o fortalecimento de um amplo e enraizado movimento de contestação social.

A maioria do povo brasileiro não é contrária à realização da Copa do Mundo no país. É contrária, sim, aos atropelos e usurpações que cercam a organização do evento. Não fosse isso, tal maioria gostaria de uma Copa no “país do futebol”. De alguma forma, então, a palavra de ordem “Não vai ter Copa” pode confundir as coisas e fazer com que uma parcela da opinião pública que poderia apoiar o movimento acabe se opondo a ele, ampliando, inclusive, a violência da repressão. Quem surfa nessa ambiguidade? O governismo mal intencionado e os defensores da realização dos grandes eventos tal qual estão sendo organizados.

De qualquer forma, com a palavra de ordem que for, nosso lado é claro – e não é o lado dos governos e da Fifa. Se a palavra de ordem “Não vai ter copa” é a quem vem das ruas, não devemos cerrar fileiras com o oportunismo político governista a combatê-la. Podemos e devemos contribuir com a discussão de táticas alternativas, mas o nosso dever é, antes de tudo, a unidade; é estar ao lado daqueles que lutam contra o superfaturamento das obras, a corrupção aberta e o uso de dinheiro público sem um mínimo de respeito às reais prioridades do país, a submissão do governo federal a exigências absurdas da Fifa, as restrições à liberdade de manifestação, às remoções, entre outros inaceitáveis ataques em nome da alegria do futebol. Provemos ao mundo que somos sim, apaixonados por futebol, mas negamos ser humilhados e oprimidos por essa paixão.


*Edemilson Paraná é jornalista, militante ELA, vice-presidente do PSOL-DF e mestrando em Sociologia na UnB.


FONTE: Brasil e Desenvolvimento

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