"O especialista é um homem que sabe cada vez mais sobre cada vez menos, e por fim acaba sabendo tudo sobre nada." - George B. Shaw
Por Aluizio Moreira
Enquanto a sociedade não atingira um grau de complexidade como o verificado com o surgimento e expansão do capitalismo após os séculos XVIII e XIX, os homens que se dedicavam à ciência, à filosofia, às artes o faziam simultaneamente, mesmo que não apresentassem ligações entre si. Isto porque até Platão, verificamos que as particularidades do conhecimento na forma que conhecemos hoje, simplesmente não existiam. A matemática, a química, a física, a medicina, etc., não constituíam campos específicos do conhecimento humano. Daí não há porque nos surpreender que Aristóteles tenha se dedicado à política, literatura, física, medicina, história natural, biologia, e matemática; Roger Bacon tenha feito incursões pela física, biologia, matemática e química; Leonardo da Vinci tenha sido pintor, escultor, arquiteto, músico, matemático, filósofo, além de se interessar pela astronomia; Galileu Galilei tenha se dedicado à matemática, medicina, mecânica; Isaac Newton foi matemático, astrônomo e poeta.
Essa diversidade de conhecimentos e de atividades exercidas por um mesmo individuo, explica-se antes de tudo, pelo modesto nível de desenvolvimento das sociedades da época.
Segundo Fachin (2003, p.16), deve-se a Aristóteles a primeira tentativa de classificação da ciência, que o fez, dividindo-a em três grandes troncos: ciências teóricas (física, matemática, metafísica), ciências práticas (ética, economia e política), ciências poéticas (“as obras produzidas pelo homem”).
O crescimento cada vez mais acelerado das populações urbanas e o consequente aumento do mercado consumidor, as necessidades de elevação do nível de produtividade, de aceleramento das comunicações e dos transportes, de maior domínio do homem sobre a natureza. . . tudo isso contribuirá de maneira irreversível, para um maior avanço das ciências e dos saberes em geral. O conhecimento “enciclopédico” não seria mais possível.
A pergunta inicial que deveremos fazer na tentativa de encaminharmos a questão é: historicamente, qual tem sido a função de uma Instituição do Ensino Superior?
Embora na Antiguidade Clássica, especialmente Grécia e Roma, não existisse universidades nem quaisquer instituições que pudéssemos considerar de Ensino Superior, existia escolas
tidas como de alto nível, para formar especialistas [grifo nosso] de classificação refinada em medicina, filosofia, retórica, direito. Discípulos que se reuniam em torno de um mestre, cuja considerável bagagem de conhecimentos era zelosamente transmitida. (LUCKESI et al, 1991, p. 30)
Só entre os séculos XI e XV, portanto na Idade Média, é que surgem as primeiras universidades, voltadas para a preparação de uma intelectualidade que se dedicava aos estudos da natureza e às questões relativas ao espiritual, ao religioso. Nesta época coube à Igreja Católica manter a unidade do ensino superior e do “conhecimento básico para todas as especialidades e proporcionar aos futuros especialistas uma formação inicial unitária e geral”. (ibid., p. 31)
No século XIX, diante do avanço da industrialização na França napoleônica, as universidades tendem a perder o sentido de uma entidade onde se cultivava a cultura e o pensamento filosófico, herdado este desde as formações das primeiras Escolas Superiores onde prevaleciam as discussões aristotélicas e agostinianas, adquirindo um caráter de ensino profissionalizante, “na linha do espírito positivista, pragmático e utilitarista” legados do iluminismo. Assim, na França “A universidade napoleônica, além de surgir em função das necessidades profissionais, estrutura-se fragmentada em escolas superiores, cada uma das quais isoladas em seus objetivos práticos”. (ibid., p. 32).
Paralelamente à universidade de modelo napoleônico na França, surge também no século XIX, outro centro universitário que retoma as discussões científicas, as propostas de pesquisa, livre do caráter profissionalizante: a Universidade de Berlim criada em 1810, por Humboldt.
Mas o fato de uma Instituição de Ensino Superior privilegiar o conhecimento científico e a pesquisa, não a isenta de difundir ideias particularistas dos saberes, talvez não tão excludentes como aquelas instituições que se dedicam à preparação de uma mão-de-obra especializada para o mercado.
A ampliação dos campos dos conhecimentos científico e tecnológico, engendrada pelo desenvolvimento das forças produtivas, a diversificação das áreas dos saberes em decorrência das novas formas de olhar o mundo, as próprias transformações constantes das realidades com as quais nos defrontamos, que nos fazem rever ou mesmo reforçar nossa forma de pensar o futuro da sociedade humana, criam objetos de estudos cada vez mais particularizados. O fato é que tudo isso não pode nos fazer perder de vista a complexidade do mundo.
É o que admite Lefebvre (1987, p. 77-78):
O especialista concentra-se numa ciência ou mesmo, com frequência, numa parte ínfima de uma ciência: a química dos corantes ou o estudo de determinada família de funções. Ignora o resto da ciência e o resto das ciências. A atividade analítica e a divisão parcelar do trabalho fragmentam a ciência e a própria sociedade numa poeira, numa justaposição informe de resultados.
É verdade que essas especializações possibilitaram o progresso das ciências. Mas na mesma medida que se tornou especialista, o homem perdeu sua dimensão de homem integral, impossibilitando-o de compreender o processo geral da realidade à que pertence, uma vez que não considera a si mesmo como um “ser de relações e não só de contatos, [pois] não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE, 1981, p. 39).
O homem na verdade enclausurou-se no seu restrito campo de estudo e de pesquisa. As consequências são observadas por Pinto (1985, p. 259):
À custa de especializar-se no estudo de certo grupo de objetos, o cientista sofre uma deformação intelectual que pode chegar a constituir-se em sério estorvo ao trabalho. Ocorre com frequência que, por excesso de especialização, venha a sofrer de limitações do campo visual, que se estreita, só se deixando sensibilizar pelos fatos ou coisas que dizem respeito ao estudo preferido.
E complementa logo a seguir o mesmo autor:
Não se trata da natural e inevitável diversificação e divisão do trabalho cientifico, e sim da distorção dessa tendência salutar, com estreitamento da acuidade intelectual do homem de ciência; não só para os resultados da pesquisa em outros setores da realidade, mas sobretudo para a compreensão de ordem geral, interpretativa, filosófica, que seus próprios resultados sugerem. Faz-se imprescindível o conhecimento da conexão dialética entre o objeto de estudo e o pensamento que o apreende, não apenas na formação das ideias, mas ainda na dos hábitos mentais que o primeiro determina o segundo. (ibid., p. 259)
O importante nas observações de Álvaro Vieira Pinto, é que o mesmo se refere explicitamente ao trabalho científico, aos homens de ciência. Portanto a questão não se limita á crítica de Instituições de Ensino Superior que orientam seus cursos de 3º grau, nos parâmetros de um curso profissionalizante, privilegiando o saber fazer. Não é raro encontrarmos mestres e doutores das áreas da Tecnologia, da Saúde, da Administração e do Direito, que agem e pensam como se eles não existissem no mundo, com o mundo e para o mundo.
REFERÊNCIAS
FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. 4.ed., São Paulo: Saraiva, 2003.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 12.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
LEFEVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, 4.ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6.ed., São Paulo: Cortez, 1991.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Leia "O especialista diante da complexidade do mundo" 1
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