A arquitetura do sistema político brasileiro implica a proteção dos proprietários em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se eleger como para governar os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa”
Por Francisco Fonseca (*)
O mal-estar da sociedade brasileira, mesmo com os grandes avanços que vêm se processando desde a última década e meia (e mesmo desde a Constituição de 1988), aponta primordialmente para o sistema político. Direta ou indiretamente, em particular as manifestações de junho de 2013 escancararam, com base nos graves problemas do cotidiano dos brasileiros, as feridas de um sistema claramente incapaz não apenas de resolvê-los, mas, sobretudo, de dar vez (e, em certo sentido, voz) aos reclamantes, notadamente os pobres.
Entende-se por sistema político o conjunto de normas e instituições que regulam os conflitos por meio de canais de expressão e resolução. É constituído por – na falta de melhor denominação – “subsistemas”: partidário, eleitoral, os poderes constituídos e suas diversas instituições, o regime federativo, e mesmo a mídia (que atua como poder paraestatal). Trata-se, portanto, de institucionalidade formal que, contudo, como veremos, convive e se articula com mecanismos informais de naturezas diversas.
A lógica do sistema político brasileiro
A atual moldura do sistema político brasileiro foi criada durante o último período militar (governo Figueiredo), e suas características se mantêm, com algumas poucas transformações, até os dias de hoje. Vejamos as principais características, sem a pretensão de esgotá-las:
• Financiamento privado das campanhas e partidos. Embora formalmente o financiamento seja misto (público, via fundo partidário e privado, por meio de doações, notadamente de empresas), na prática é largamente privado, tendo em vista o chamado caixa dois. Mas deve-se ressaltar que mesmo o financiamento privado legal, em que há leis e controles, é, por princípio, ilegítimo, em razão da assimetria econômica que impõe aos partidos. Em qualquer sentido, a vida pública tornou-se essencialmente organizada pelo poder privado do capital e, além disso, a própria dinâmica do poder implica relações ocultas – que permanecem mesmo com os avanços nos processos de transparência –, por meio da ampla rede de fornecedores privados.
• Multipartidarismo extremamente flexível, pouco representativo e estimulador do “mercado da política”. Embora a existência potencial de diversos partidos seja fundamental à democracia, uma vez que pode permitir a expressão de interesses e visões de mundo distintos, o multipartidarismo criado pelo general Golbery objetivava justamente a pulverização das forças políticas de oposição de tal modo que não tivessem poder suficiente para derrotar o status quo civil-militar. Consolidada a retirada dos militares da cena política, o multipartidarismo teve outros objetivos, para além da pluralidade político-ideológica expressa nos diversos partidos, tais como: a) a formação de alianças eleitorais, em larga medida não programáticas, tendo em vista a soma do tempo de rádio e TV referente à propaganda eleitoral; b) a coalizão – inclusive com vários dos partidos derrotados nas eleições – para a composição de maiorias após a vitória eleitoral, igualmente não programáticas, com vistas a constituir uma “base governista” ampla capaz de aprovar medidas de governo; e c) o chamado “balcão de negócios”, em que barganhas dos referidos tempos no rádio e na TV e na formação de alianças, assim como todo tipo de “varejo” parlamentar perante o Executivo, tornaram-se o modus operandi da vida política.
• Não consolidação dos partidos políticos como agentes de representação social popular, uma vez que a lógica sistêmica da vida política implica tanto a “privatização da política” como a ocupação dos espaços institucionais pelos partidos da “ordem”, cujos interesses fulcrais são a defesa do capital e das classes médias e superiores. Esse processo é, contudo, enevoado pelo discurso da “eficiência”, da “eficácia”, do “empreendedorismo” e quejandos. A infidelidade partidária (apenas recentemente minorada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, mas driblada pela nova onda de criação de partidos) apenas confirma esse postulado.
• Acesso ao rádio e à TV a todos os partidos com representação federal independentemente de sua representatividade social. Dessa forma, os chamados “partidos de aluguel” – jargão político trágico da vida institucional –, cuja representação parlamentar é minúscula, obtêm todas as (diversas) benesses do sistema político, reforçando a pulverização e a privatização da vida política.1
• Não transparência quanto ao uso dos recursos eleitorais (apenas as doações legais são efetivamente fiscalizadas pela ação da Justiça Eleitoral), uma vez que a prática do caixa dois é complexa e em larga medida vigente no cotidiano da vida político-administrativa: daí a espessa névoa que encobre inúmeros processos licitatórios no contexto da relação entre poder público e setores do capital. Em outras palavras, o financiamento privado ilegal não ocorre apenas em períodos eleitorais, pois tende, sobretudo após a “emenda da reeleição” – verdadeiro golpe branco desferido contra a democracia pelo governo FHC –, a fazer parte do cotidiano de quem assume o poder, excetuados os que lutam contra a roldana do sistema.
• Baixo controle social, em termos institucionais, dos cidadãos perante os representantes eleitos, cujo mandato se torna “propriedade” destes, o que faz da representação política arena de negociação distante e muitas vezes em oposição aos interesses populares. Portanto, quanto mais distante do cidadão comum, mais privatizado e elitista se torna o sistema político.
• Destituição dos poderes do Parlamento quanto à proposição da “agenda” política e de políticas públicas transformadoras, em contraste ao potencial lócus de representação plural e particularmente popular. A chamada “crise do Parlamento” é, dessa forma, estratégica ao jogo das elites, uma vez que o rebaixamento do Legislativo implica hipertrofia do Executivo, em que a tomada de decisão é infinitamente mais rápida e informal.
• Sistema eleitoral voltado tanto à desvalorização dos partidos – enquanto instituição, com a consequente personificação de indivíduos – quanto à pulverização e fragmentação da representação partidária. Ressalte-se que a personificação tem potencial desmobilizador da ação coletiva.
• Sistema midiático oligopolizado e oligárquico, notadamente a rede concessionária de TVs e rádios, articulada a jornais, revistas e portais, cujos órgãos atuam como verdadeiro “Partido da Imprensa Golpista”, conforme expressão notabilizada por Paulo Henrique Amorim. A mídia é um ator político paraestatal com grande poder de influenciar tanto a percepção social da vida política como a formação de consciências. É claramente partícipe do jogo político, embora estrategicamente seu discurso oculte tal atuação. Deve-se, dessa forma, considerá-la como parte do sistema político, o que implica necessariamente sua reforma, à luz, por exemplo, do que ocorreu na Argentina por meio da Ley de Medios.
Apesar de claramente disfuncionais à representação dos interesses populares, essas características são justificadas pelo debate político e pela ciência política dominante como garantidoras da chamada “governabilidade”, isto é, das condições de obtenção de maioria para governar, nos respectivos parlamentos, com vistas à consecução dos objetivos da coalizão de governo.
Sistema político vs. interesses populares
Essa forma de organização do sistema político claramente não contempla grande parte dos interesses populares – voltados à resolução dos ainda graves problemas do cotidiano, relacionados tanto ao emprego e à renda como ao acesso a bens e equipamentos públicos e privados –, que passam em larga medida pela reversão de prioridades em termos de agenda e de orçamento. Aliás, o travamento decisório de inúmeros temas que afetam os brasileiros, em especial os pobres, fundamentalmente garante o status quo. Entre esses temas estão, além de inúmeros outros exemplos, a reforma tributária, uma vez que os impostos, ao serem indiretos, tributam pesadamente os pobres; a dívida interna, nas mãos de cerca de 20 mil famílias e dos bancos; o papel dos bancos e do capital especulativo, altamente lucrativos e sem responsabilidades sociais; o papel e financiamento do agronegócio, que sorve parte significativa dos recursos orçamentários da agricultura, em detrimento da produção agrícola familiar; o papel do BNDES como agente de financiamento a grandes empresas, sem controle social; o oligopólio da mídia e a não regulamentação da Constituição quanto ao papel dos meios de comunicação.
Aos movimentos sociais, essa dinâmica não tem passado despercebida, como se pode observar no manifesto do Grito dos Excluídos, publicado no dia 7 de setembro: “A estrutura do Estado brasileiro historicamente tem servido aos interesses das elites e para a manutenção de seu poder sobre os/as trabalhadores/as, os/as excluídos/as, sobre o povo brasileiro. Poucos são os espaços nos quais o povo tem realmente sua voz escutada e poucas são as oportunidades de interferir nos rumos da política em geral, especialmente na construção de políticas públicas voltadas para a maioria da população. Nos últimos anos temos presenciado essa estrutura de poder oprimindo as populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas pelo desrespeito a sua cultura e seus territórios. Nas regiões rurais, indígenas e sem-terra têm seus direitos violados em favor dos empresários do agronegócio. Nos estados e municípios, principalmente nas regiões periféricas, as polícias militares matam jovens, principalmente os negros homens entre 15 e 29 anos. As forças de repressão perseguem lutadoras e lutadores, organizados ou não, que protestam por um país mais justo e igualitário. A estrutura do Judiciário opera com dois pesos e duas medidas, atuando em favor dos poderosos e contra o povo. As eleições para os cargos legislativos e executivos são um grande balcão de negócios e impedem, através das regras de organização eleitorais, que mulheres, negros/as, sem terra, trabalhadores/as, indígenas, quilombolas e outros setores populares da sociedade acessem os espaços de exercício do poder. O sistema político impede avanços sociais de interesse do povo”.2
Como se observa, o sistema político é apercebido pelos movimentos populares – o excerto citado é apenas uma amostra, representativa, do pensamento de outros tantos movimentos – como distante e elitista, portanto, não representativo da pluralidade dos interesses sociais e sobretudo da maior parte dos cidadãos.
Mesmo movimentos mais propriamente institucionalizados, como a Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, assume posição bastante similar, pois: “[O] Congresso impede que tais reformas [democrático-populares] sejam aprovadas. Isso porque parte dele representa os interesses de uma pequena parcela da sociedade que financia as campanhas eleitorais, ou seja, de algumas poucas empresas. Assim, as necessidades da maioria da população nunca são atendidas de verdade. É isso que causa grande parte da corrupção política gerando inclusive a atual crise de representatividade no país. Só com uma reforma política democrática será possível superar tais problemas que degradam a democracia brasileira”.3
Como se vê, reitera-se aquilo que, em perspectiva internacional, foi apontado pelo movimento Occupy Wall Street como “We are 99%”, isto é, a percepção popular de que o sistema político não apenas não representa a maioria esmagadora das pessoas comuns, como também, sobretudo, é apropriado privativamente pela minúscula parcela do capital: uma verdadeira plutocracia encoberta pela “democracia formal”.
Sistema político voltado à proteção das elites
Essa arquitetura do sistema político brasileiro implica essencialmente a proteção dos proprietários (de diversas frações do capital) em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se eleger (reitere-se o papel do financiamento privado e das coligações para obtenção de tempo no rádio e na TV) como para governar (“dívida” para com os financiadores e necessidade de maioria parlamentar para ter “governabilidade”), os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa” de governo.
Decorre daí a formulação de políticas públicas tímidas, uma vez que não podem atentar contra grandes interesses constituídos, e contraditórias, pois necessitam contemplar as coalizões – de partidos “da ordem” com os que só existem por “jogar o jogo” institucional. Tudo isso impede a efetivação de reformas “radicais”.
Dessa forma, as chamadas “reformas progressistas”, colocadas em prática pelos governos Lula e Dilma na área social, só podem ocorrer de forma incremental, tímida e sem assustar as elites. É por isso que muitos dos grandes gargalos estruturais não são destravados, tais como: sistema judiciário-prisional apenas voltado aos pobres; reforma agrária e política agrícola tímidas; poder desmesurado dos bancos e do capital financeiro; desmontagem progressiva da CLT; ainda pequena proporção do PIB nos gastos sociais; intocabilidade da taxação às grandes fortunas; poder desmesurado do agronegócio; intocabilidade da mídia; entre inúmeros outros.
Pode-se dizer, portanto, que o sistema político brasileiro rigorosamente constrange os partidos políticos que lutam pela diminuição “radical” da desigualdade social. As políticas públicas, isto é, o conteúdo da democracia, são, dessa forma, moldadas de acordo com essa estrutura inabalada do sistema político, o que implica atraso quanto ao desenvolvimento social (mensurado por indicadores como o Índice de Gini, o IDH e tantos outros), proteção às elites econômicas e distanciamento entre sistema político e os que mais precisam dele!
A reforma do sistema político
Reformar o sistema político, embora não seja panaceia, é, portanto, tarefa urgente para relegitimar a democracia brasileira, aproximando-a do cidadão comum e dando-lhe instrumentos para, naquilo que cabe à ação política institucional, poder haver a presença dos interesses populares. Como se observa pela experiência, os movimentos sociais são particularmente responsáveis por essa tarefa, uma vez que a lógica do sistema político tende a engolir os partidos institucionais num círculo vicioso assim constituído: sistema partidário/eleitoral privatizante; lógica institucional que veta grandes transformações; democracia formal e plutocrática.
Os perigos desse sistema, cuja disfuncionalidade é igualmente sistêmica, apresentam-se tanto nas ruas (ressurgimento da extrema direita, por exemplo) como em aventuras eleitorais, que, aliás, vimos no passado e são potencialmente presentes (caso do discurso despolitizante de Marina Silva).
Trata-se de tarefa urgente!
(*) mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.
Ilustração: Daniel Kondo
1 É claro que os pequenos partidos ideológicos sofreriam com uma reforma política, caso houvesse, por exemplo, a instituição da “cláusula de barreira”, o que geraria enorme crise de legitimidade. Contudo, instrumentos como “federação de partidos”, em que pequenos partidos possam somar, por afinidade, seu eleitorado, seriam uma saída, entre outras. Não há reforma sem impactos múltiplos. A questão central diz respeito à “desprivatização” da vida pública, no limite do que cabe à ação política, ao aumento da representatividade popular e ao fim da “democracia plutocrática”.
2 Disponível em:
<www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/09/no-dia-da-independencia-grito-dos-excluidos-pede-politica-capaz-de-mudancas-estruturais-8024.html>
3 Disponível em:<www.reformapoliticademocratica.org.br/conheca-o-projeto/>
FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil