sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A que(m) serve o sistema político brasileiro?


A arquitetura do sistema político brasileiro implica a proteção dos proprietários em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se eleger como para governar os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa”


Por Francisco Fonseca (*)


O mal-estar da sociedade brasileira, mesmo com os grandes avanços que vêm se processando desde a última década e meia (e mesmo desde a Constituição de 1988), aponta primordialmente para o sistema político. Direta ou indiretamente, em particular as manifestações de junho de 2013 escancararam, com base nos graves problemas do cotidiano dos brasileiros, as feridas de um sistema claramente incapaz não apenas de resolvê-los, mas, sobretudo, de dar vez (e, em certo sentido, voz) aos reclamantes, notadamente os pobres.

Entende-se por sistema político o conjunto de normas e instituições que regulam os conflitos por meio de canais de expressão e resolução. É constituído por – na falta de melhor denominação – “subsistemas”: partidário, eleitoral, os poderes constituídos e suas diversas instituições, o regime federativo, e mesmo a mídia (que atua como poder paraestatal). Trata-se, portanto, de institucionalidade formal que, contudo, como veremos, convive e se articula com mecanismos informais de naturezas diversas.

A lógica do sistema político brasileiro

A atual moldura do sistema político brasileiro foi criada durante o último período militar (governo Figueiredo), e suas características se mantêm, com algumas poucas transformações, até os dias de hoje. Vejamos as principais características, sem a pretensão de esgotá-las:

• Financiamento privado das campanhas e partidos. Embora formalmente o financiamento seja misto (público, via fundo partidário e privado, por meio de doações, notadamente de empresas), na prática é largamente privado, tendo em vista o chamado caixa dois. Mas deve-se ressaltar que mesmo o financiamento privado legal, em que há leis e controles, é, por princípio, ilegítimo, em razão da assimetria econômica que impõe aos partidos. Em qualquer sentido, a vida pública tornou-se essencialmente organizada pelo poder privado do capital e, além disso, a própria dinâmica do poder implica relações ocultas – que permanecem mesmo com os avanços nos processos de transparência –, por meio da ampla rede de fornecedores privados.

• Multipartidarismo extremamente flexível, pouco representativo e estimulador do “mercado da política”. Embora a existência potencial de diversos partidos seja fundamental à democracia, uma vez que pode permitir a expressão de interesses e visões de mundo distintos, o multipartidarismo criado pelo general Golbery objetivava justamente a pulverização das forças políticas de oposição de tal modo que não tivessem poder suficiente para derrotar o status quo civil-militar. Consolidada a retirada dos militares da cena política, o multipartidarismo teve outros objetivos, para além da pluralidade político-ideológica expressa nos diversos partidos, tais como: a) a formação de alianças eleitorais, em larga medida não programáticas, tendo em vista a soma do tempo de rádio e TV referente à propaganda eleitoral; b) a coalizão – inclusive com vários dos partidos derrotados nas eleições – para a composição de maiorias após a vitória eleitoral, igualmente não programáticas, com vistas a constituir uma “base governista” ampla capaz de aprovar medidas de governo; e c) o chamado “balcão de negócios”, em que barganhas dos referidos tempos no rádio e na TV e na formação de alianças, assim como todo tipo de “varejo” parlamentar perante o Executivo, tornaram-se o modus operandi da vida política.

• Não consolidação dos partidos políticos como agentes de representação social popular, uma vez que a lógica sistêmica da vida política implica tanto a “privatização da política” como a ocupação dos espaços institucionais pelos partidos da “ordem”, cujos interesses fulcrais são a defesa do capital e das classes médias e superiores. Esse processo é, contudo, enevoado pelo discurso da “eficiência”, da “eficácia”, do “empreendedorismo” e quejandos. A infidelidade partidária (apenas recentemente minorada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, mas driblada pela nova onda de criação de partidos) apenas confirma esse postulado.

• Acesso ao rádio e à TV a todos os partidos com representação federal independentemente de sua representatividade social. Dessa forma, os chamados “partidos de aluguel” – jargão político trágico da vida institucional –, cuja representação parlamentar é minúscula, obtêm todas as (diversas) benesses do sistema político, reforçando a pulverização e a privatização da vida política.1

• Não transparência quanto ao uso dos recursos eleitorais (apenas as doações legais são efetivamente fiscalizadas pela ação da Justiça Eleitoral), uma vez que a prática do caixa dois é complexa e em larga medida vigente no cotidiano da vida político-administrativa: daí a espessa névoa que encobre inúmeros processos licitatórios no contexto da relação entre poder público e setores do capital. Em outras palavras, o financiamento privado ilegal não ocorre apenas em períodos eleitorais, pois tende, sobretudo após a “emenda da reeleição” – verdadeiro golpe branco desferido contra a democracia pelo governo FHC –, a fazer parte do cotidiano de quem assume o poder, excetuados os que lutam contra a roldana do sistema.

• Baixo controle social, em termos institucionais, dos cidadãos perante os representantes eleitos, cujo mandato se torna “propriedade” destes, o que faz da representação política arena de negociação distante e muitas vezes em oposição aos interesses populares. Portanto, quanto mais distante do cidadão comum, mais privatizado e elitista se torna o sistema político.

• Destituição dos poderes do Parlamento quanto à proposição da “agenda” política e de políticas públicas transformadoras, em contraste ao potencial lócus de representação plural e particularmente popular. A chamada “crise do Parlamento” é, dessa forma, estratégica ao jogo das elites, uma vez que o rebaixamento do Legislativo implica hipertrofia do Executivo, em que a tomada de decisão é infinitamente mais rápida e informal.

• Sistema eleitoral voltado tanto à desvalorização dos partidos – enquanto instituição, com a consequente personificação de indivíduos – quanto à pulverização e fragmentação da representação partidária. Ressalte-se que a personificação tem potencial desmobilizador da ação coletiva.

• Sistema midiático oligopolizado e oligárquico, notadamente a rede concessionária de TVs e rádios, articulada a jornais, revistas e portais, cujos órgãos atuam como verdadeiro “Partido da Imprensa Golpista”, conforme expressão notabilizada por Paulo Henrique Amorim. A mídia é um ator político paraestatal com grande poder de influenciar tanto a percepção social da vida política como a formação de consciências. É claramente partícipe do jogo político, embora estrategicamente seu discurso oculte tal atuação. Deve-se, dessa forma, considerá-la como parte do sistema político, o que implica necessariamente sua reforma, à luz, por exemplo, do que ocorreu na Argentina por meio da Ley de Medios.

Apesar de claramente disfuncionais à representação dos interesses populares, essas características são justificadas pelo debate político e pela ciência política dominante como garantidoras da chamada “governabilidade”, isto é, das condições de obtenção de maioria para governar, nos respectivos parlamentos, com vistas à consecução dos objetivos da coalizão de governo.

Sistema político vs. interesses populares

Essa forma de organização do sistema político claramente não contempla grande parte dos interesses populares – voltados à resolução dos ainda graves problemas do cotidiano, relacionados tanto ao emprego e à renda como ao acesso a bens e equipamentos públicos e privados –, que passam em larga medida pela reversão de prioridades em termos de agenda e de orçamento. Aliás, o travamento decisório de inúmeros temas que afetam os brasileiros, em especial os pobres, fundamentalmente garante o status quo. Entre esses temas estão, além de inúmeros outros exemplos, a reforma tributária, uma vez que os impostos, ao serem indiretos, tributam pesadamente os pobres; a dívida interna, nas mãos de cerca de 20 mil famílias e dos bancos; o papel dos bancos e do capital especulativo, altamente lucrativos e sem responsabilidades sociais; o papel e financiamento do agronegócio, que sorve parte significativa dos recursos orçamentários da agricultura, em detrimento da produção agrícola familiar; o papel do BNDES como agente de financiamento a grandes empresas, sem controle social; o oligopólio da mídia e a não regulamentação da Constituição quanto ao papel dos meios de comunicação.

Aos movimentos sociais, essa dinâmica não tem passado despercebida, como se pode observar no manifesto do Grito dos Excluídos, publicado no dia 7 de setembro: “A estrutura do Estado brasileiro historicamente tem servido aos interesses das elites e para a manutenção de seu poder sobre os/as trabalhadores/as, os/as excluídos/as, sobre o povo brasileiro. Poucos são os espaços nos quais o povo tem realmente sua voz escutada e poucas são as oportunidades de interferir nos rumos da política em geral, especialmente na construção de políticas públicas voltadas para a maioria da população. Nos últimos anos temos presenciado essa estrutura de poder oprimindo as populações quilombolas, indígenas, ribeirinhas pelo desrespeito a sua cultura e seus territórios. Nas regiões rurais, indígenas e sem-terra têm seus direitos violados em favor dos empresários do agronegócio. Nos estados e municípios, principalmente nas regiões periféricas, as polícias militares matam jovens, principalmente os negros homens entre 15 e 29 anos. As forças de repressão perseguem lutadoras e lutadores, organizados ou não, que protestam por um país mais justo e igualitário. A estrutura do Judiciário opera com dois pesos e duas medidas, atuando em favor dos poderosos e contra o povo. As eleições para os cargos legislativos e executivos são um grande balcão de negócios e impedem, através das regras de organização eleitorais, que mulheres, negros/as, sem terra, trabalhadores/as, indígenas, quilombolas e outros setores populares da sociedade acessem os espaços de exercício do poder. O sistema político impede avanços sociais de interesse do povo”.2

Como se observa, o sistema político é apercebido pelos movimentos populares – o excerto citado é apenas uma amostra, representativa, do pensamento de outros tantos movimentos – como distante e elitista, portanto, não representativo da pluralidade dos interesses sociais e sobretudo da maior parte dos cidadãos.

Mesmo movimentos mais propriamente institucionalizados, como a Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas, assume posição bastante similar, pois: “[O] Congresso impede que tais reformas [democrático-populares] sejam aprovadas. Isso porque parte dele representa os interesses de uma pequena parcela da sociedade que financia as campanhas eleitorais, ou seja, de algumas poucas empresas. Assim, as necessidades da maioria da população nunca são atendidas de verdade. É isso que causa grande parte da corrupção política gerando inclusive a atual crise de representatividade no país. Só com uma reforma política democrática será possível superar tais problemas que degradam a democracia brasileira”.3

Como se vê, reitera-se aquilo que, em perspectiva internacional, foi apontado pelo movimento Occupy Wall Street como “We are 99%”, isto é, a percepção popular de que o sistema político não apenas não representa a maioria esmagadora das pessoas comuns, como também, sobretudo, é apropriado privativamente pela minúscula parcela do capital: uma verdadeira plutocracia encoberta pela “democracia formal”.

Sistema político voltado à proteção das elites

Essa arquitetura do sistema político brasileiro implica essencialmente a proteção dos proprietários (de diversas frações do capital) em detrimento da maior parte dos cidadãos. Afinal, tanto para se eleger (reitere-se o papel do financiamento privado e das coligações para obtenção de tempo no rádio e na TV) como para governar (“dívida” para com os financiadores e necessidade de maioria parlamentar para ter “governabilidade”), os partidos políticos que chegam ao poder necessitam, inescapavelmente, negociar compromissos assumidos durante as eleições e o próprio “programa” de governo.

Decorre daí a formulação de políticas públicas tímidas, uma vez que não podem atentar contra grandes interesses constituídos, e contraditórias, pois necessitam contemplar as coalizões – de partidos “da ordem” com os que só existem por “jogar o jogo” institucional. Tudo isso impede a efetivação de reformas “radicais”.

Dessa forma, as chamadas “reformas progressistas”, colocadas em prática pelos governos Lula e Dilma na área social, só podem ocorrer de forma incremental, tímida e sem assustar as elites. É por isso que muitos dos grandes gargalos estruturais não são destravados, tais como: sistema judiciário-prisional apenas voltado aos pobres; reforma agrária e política agrícola tímidas; poder desmesurado dos bancos e do capital financeiro; desmontagem progressiva da CLT; ainda pequena proporção do PIB nos gastos sociais; intocabilidade da taxação às grandes fortunas; poder desmesurado do agronegócio; intocabilidade da mídia; entre inúmeros outros.

Pode-se dizer, portanto, que o sistema político brasileiro rigorosamente constrange os partidos políticos que lutam pela diminuição “radical” da desigualdade social. As políticas públicas, isto é, o conteúdo da democracia, são, dessa forma, moldadas de acordo com essa estrutura inabalada do sistema político, o que implica atraso quanto ao desenvolvimento social (mensurado por indicadores como o Índice de Gini, o IDH e tantos outros), proteção às elites econômicas e distanciamento entre sistema político e os que mais precisam dele!

A reforma do sistema político

Reformar o sistema político, embora não seja panaceia, é, portanto, tarefa urgente para relegitimar a democracia brasileira, aproximando-a do cidadão comum e dando-lhe instrumentos para, naquilo que cabe à ação política institucional, poder haver a presença dos interesses populares. Como se observa pela experiência, os movimentos sociais são particularmente responsáveis por essa tarefa, uma vez que a lógica do sistema político tende a engolir os partidos institucionais num círculo vicioso assim constituído: sistema partidário/eleitoral privatizante; lógica institucional que veta grandes transformações; democracia formal e plutocrática.

Os perigos desse sistema, cuja disfuncionalidade é igualmente sistêmica, apresentam-se tanto nas ruas (ressurgimento da extrema direita, por exemplo) como em aventuras eleitorais, que, aliás, vimos no passado e são potencialmente presentes (caso do discurso despolitizante de Marina Silva).

Trata-se de tarefa urgente! 



(*) mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.



Ilustração: Daniel Kondo


1  É claro que os pequenos partidos ideológicos sofreriam com uma reforma política, caso houvesse, por exemplo, a instituição da “cláusula de barreira”, o que geraria enorme crise de legitimidade. Contudo, instrumentos como “federação de partidos”, em que pequenos partidos possam somar, por afinidade, seu eleitorado, seriam uma saída, entre outras. Não há reforma sem impactos múltiplos. A questão central diz respeito à “desprivatização” da vida pública, no limite do que cabe à ação política, ao aumento da representatividade popular e ao fim da “democracia plutocrática”.

2 Disponível em: 
<www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/09/no-dia-da-independencia-grito-dos-excluidos-pede-politica-capaz-de-mudancas-estruturais-8024.html>

3 Disponível em:<www.reformapoliticademocratica.org.br/conheca-o-projeto/>



quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O Brasil numa encruzilhada: breves comentários


Por Aluizio Moreira


Passado o clima tenso das disputas eleitorais com a vitória de Dilma Rousseff, é fundamental que procuremos entender o “novo” quadro politico brasileiro, para além do voto. 

Esse “novo quadro politico” (nem tão novo assim!) surgido com as eleições deste outubro, já vinha, creio eu, se desenhando antes mesmo da posse de Lula em janeiro de 2003, quando as possíveis alianças que começavam a ser delineadas do PT com a chamada esquerda socialista, foram frustradas  em junho de 2002, com o lançamento da “Carta ao povo brasileiro”, que jogava na lata do lixo o “Programa dos 100 dias”, que congregava o PCB, o próprio PT, o PDT, o PSB e o PCdoB, na tentativa e estabelecer-se uma plataforma politica voltada para os interesses democráticos e populares.

Na referida Carta, que enterrou de vez o “Programa dos 100 dias”, Lula procurava acalmar o mercado financeiro e as oposições politicas e empresariais internas, que se aglutinavam contra sua possível vitória eleitoral, levantando naquela ocasião, a bandeira da mudança “para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos.”

Permitam-me reproduzir algumas passagens da “Carta ao povo brasileiro” que orientaria o Governo petista por 16 anos e que paulatinamente o foi conduzindo para os impasses atuais, sobretudo pelo abandono das pautas reformistas, ao assumir o poder.

Êis como a “Carta ao povo brasileiro” procurava justificar o lançamento de uma candidatura que, convenhamos! abriu um espaço para confiança nas mudanças significativas na nossa sociedade:

“Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz um balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.”

Mais adiante:

“O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se.”

A partir dai o PT acena para as mudanças pretendidas, como parte de um Programa Politico amplo e capaz de mobilizar um grande contingente de apoiadores, pelo menos por um número razoável de setores progressistas e da classe média: crescimento econômico, geração de emprego e renda, redução da criminalidade, respeito de nossa “presença soberana e respeitada no mundo”, criação de um “amplo mercado interno de consumo de massa”, reforma tributária, reforma agrária, redução das carências energéticas, revisão das privatizações tucanas, diminuição do déficit habitacional, reforma da previdência, reforma trabalhista, institucionalização de programas contra a fome e insegurança pública.

Para realização de todo este Programa o Governo empossado necessitaria de “uma ampla negociação nacional”, que deveria conduzir a uma politica de alianças pelo pais, a um novo “contrato social”, capaz de “assegurar o crescimento com estabilidade”, dinamizando nossas exportações, investimento na infraestrutura, prioridade para geração de divisas, valorização do agronegócio. Tudo isto só seria possível, na medida em que o PT estivesse “disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade”. (Mera coincidência com o discurso da presidente após sua reeleição?)

O fato é que o Governo Lula abandonou uma politica de pretendidas reformas sociais, favorecendo o grande capital com a transferência de recursos públicos, beneficiando o capital financeiro, o agronegócio, procurando favorecer as empresas multinacionais com a politica de precarização do trabalho e da flexibilização do direito trabalhista. O grande arco de alianças para manter a chamada “governabilidade”, tornou-se uma prática politica, além de cooptações de organizações sindicais, partidos políticos de uma autodenominada esquerda, com o loteamento de cargos e ministérios entre seus aliados.

Após dezesseis anos de mandato petista, o que restou da reforma agrária, da reforma tributária, da demarcação das terras indígena, da defesa das comunidades negras e quilombolas, da prometida revisão das privatizações, da auditoria da divida publica prevista na nossa Constituição? O que dizer da implantação da mercantilização do ensino universitário, da saúde, da previdência social?

Em junho de 2013 testemunhamos a eclosão de um movimento de grande amplitude nacional, que punha em cheque a falta de sensibilidade politica e de compromisso com as questões sociais e populares do Governo petista. Foi o sinal de um “esgotamento” de toda uma politica social e econômica, que parecia repetir o esgotamento identificado por Lula na sua “Carta ao povo brasileiro” de 2002. A grande diferença qualitativa, é que no bojo daqueles movimentos sociais e populares de 2013, conservadores e direitistas mesclaram-se com esses movimentos, fazendo coro contra o governo, contra a politica e contra partidos. 

O discurso das mudanças ganhou novamente as ruas: contra a corrupção, pelo descaso da educação, da saúde, em defesa da segurança publica e da mobilidade urbana. Mas há mudanças e mudanças. As mudanças podem ser canalizadas para a esquerda ou para a direita.

Arrisco dizer que há uma ligação direta entre o junho de 2013 e o outubro de 2014. Com um saldo que pende para o conservadorismo e para a direita, sobretudo pelo discurso preconceituoso e agressivo e sintomaticamente antissocialista. Como se o espectro do comunismo tivesse rondando os lares dos brasileiros: em pauta, a critica agressiva à Venezuela, à Cuba, ao Mais Médicos, que ganharam as redes sociais.

Quais as perspectivas politicas para o Brasil daqui para adiante? 

sábado, 25 de outubro de 2014

Participação Social, o novo fantasma das elites


Reação feroz dos conservadores ao decreto de Dilma revela incapacidade de
compreender sociedades atuais e interesse de manter politica como monopólio
dos "representantes"


Por Ladislau Dowbor

O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que do fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está logo no artigo 1º, e garante portanto a participação cidadã através de representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à democracia não pode ser ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com representantes.

A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a democracia representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocaram nos seus discursos a que população participe, apoie, critique, fiscalize, exerça os seus direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os agrupamentos da direita invertem o discurso.

É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis. Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da população e os processos decisórios.

Os resultados foram que se construíram viadutos e outras infraestruturas para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando as cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional, priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.

Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um residente de um bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir a revolta, ou sair indignadas às ruas. Mas o que as pessoas necessitam é justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao gerar canais de participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das necessidades reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens; saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos.

Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia, trata-se de uma defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se trata de uma incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão pública.

Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos está cada vez mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer e semelhantes. Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio, automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando 18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte, lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não é gasto, é investimento nas pessoas.

A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna é que são capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e a segurança e assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham. São formas densas de organização da sociedade.

Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas, fizemos na Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da Criança. É um gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de maneira participativa e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente, nas regiões onde trabalham, tanto a mortalidade infantil como as hospitalizações. O custo total por criança é de 1,70 reais por mês. A revista Exame publica um estudo sobre esta Organização da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se consegue tantos resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente instituição mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada com as grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que chega a organizações deste tipo se multiplica.

A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada em que o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna qualquer iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a política pública se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar os resultados que lhe interessam. A eficiência aqui não é porque se aplicou a última recomendação dos consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time, lean-and-mean, TQM e semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os destinatários finais das políticas se apropriem do processo, controlem os resultados.

As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos Estados Unidos, as OSCs da área da saúde administram grande parte dos projetos, simplesmente porque são mais eficientes. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano, são simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a ganhar com este tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O seu conceito de privado é muito estreito.

Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países desenvolvidos têm ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e prestação de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio em nome da democracia não ajuda nada.


Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org


FONTE: Outras Palavras

domingo, 19 de outubro de 2014

Eleições 2014: os dilemas da esquerda socialista no segundo turno



Por Marcelo Badaró Mattos 



Desde 1994, as eleições presidenciais no Brasil são polarizadas por disputas entre os candidatos do PSDB e do PT. Após doze anos à frente do governo federal, o PT chega novamente a um segundo turno contra uma candidatura do PSDB. Nada de novo no ar?

Há uma inegável continuidade de um quadro partidário que multiplica legendas, mas tende a uma polarização bipartidária, determinada pelas características de um regime democrático que restringe a participação às eleições e transforma o processo eleitoral em uma disputa pautada pelos “investimentos” em marketing, cuja eficácia depende da “generosidade” das empresas que “doam” recursos à campanha.

Há, no entanto, algo de diferente nessas eleições. Guilherme Boulos, em instigante artigo publicado na Folha de São Paulo, identifica uma “onda conservadora”, que associa ao fato de os campeões de voto para a Câmara Federal serem figuras nefastas da vida política brasileira: defensores da pena de morte, da redução da maioridade penal, viúvas da ditadura, que se esmeram em representar o conservadorismo homofóbico, racista e elitista.

É com base no mesmo vento à direita que se pode explicar o crescimento, na reta final do primeiro turno, da candidatura de Aécio Neves, do PSDB, que de fato representa hoje o perfil eleitoralmente viável das tendências mais reacionárias da classe dominante brasileira. Eleitoralmente tão viável que conquista votos entre setores da classe trabalhadora urbana, apresentando-se como representação dos anseios por “mudança”.

Boulos é particularmente feliz em apontar como tais anseios por mudança podem ser associados ao clamor das ruas nas jornadas de junho de 2013. Não se trata de fazer uma associação apressada e dizer que, em meio às disputas políticas que atravessaram aquelas manifestações, o reacionarismo das classes dominantes tenha predominado claramente. Pelo contrário, as jornadas acabaram por impulsionar movimentos grevistas, ocupações urbanas e outras formas de luta que podem ter um efeito multiplicador de médio prazo na correlação de forças sociais, tão desfavorável à classe trabalhadora nas duas últimas décadas. Mas, justamente porque as jornadas abriram um novo horizonte na luta de classes, as forças da reação se rearmaram e puseram-se em posições mais abertamente agressivas.

A ideia do ‘mal menor’ se desgastou

Nesse quadro, a proposta de conciliação de classes do discurso petista parece não dar conta de simular atender ao clamor de mudanças expresso nas ruas e, ao mesmo tempo, manter a confiança dos setores do capital que objetivamente representa no governo, em torno de sua eficácia na contenção das lutas sociais. Aí pode estar uma chave para compreendermos o inegável avanço conservador no quadro eleitoral.

É frente a essa realidade desafiadora que a esquerda socialista necessita se posicionar. Os posicionamentos mais simples passam por recomendar o voto (contra Aécio; em Dilma, com ou sem crítica; nulo; ou qualquer outra recomendação). Acredito, porém, que, para que o debate em torno a esse ponto possa ser mais interessante e pedagógico, para o setor mais organizado da classe e o eleitorado dos partidos de esquerda, a simples recomendação de voto é insuficiente como política de esquerda.

De fato, há razões objetivas muito fortes para se combater a candidatura de Aécio Neves. Os(as) militantes que viveram ativamente a década de 1990 recordam vivamente a amplitude da política privatista, a submissão ao setor financeiro e às diretrizes do FMI/Banco Mundial, o avanço do desemprego, a retirada de direitos sociais, os ataques aos sindicatos, o desmanche dos serviços públicos, em particular na saúde e educação, a conivência com os assassinatos de trabalhadores rurais sem terra, os avanços na militarização e criminalização no trato com os setores mais organizados, assim como os mais precarizados da classe trabalhadora, entre muitas outras faces da caixa de Pandora neoliberal dos dois mandatos do PSDB de Fernando Henrique Cardoso. Como este artigo é escrito para leitores de esquerda, acredito que não é necessário ir além para caracterizar o caráter reacionário da candidatura tucana.

Mas isso não pode bastar para taparmos o nariz e recomendarmos o voto no “menos pior”, representado pelo PT de Dilma. Fazer isso, assim sem mais, é simplesmente passar uma borracha sobre tudo aquilo que a esquerda criticou nos governos do PT nos últimos anos.

Afinal, se a maior parte do serviço já havia sido cumprida pela privataria tucana, o PT continuou privatizando (vide aeroportos, leilões de petróleo, PPPs variadas etc.), assim como continuou governando para o grande capital, com a manutenção de metas elevadas de superávit primário, juros altos, privilégios e subsídios ao setor industrial de bens duráveis (com presença predominante do capital estrangeiro) e ao agronegócio dirigido pelas multinacionais do agrotóxico e dos organismos geneticamente modificados. No plano dos direitos sociais, é preciso sempre lembrar que o primeiro mandato petista à frente do governo federal se iniciou com Lula utilizando-se do “lubrificante monetário” para garantir uma base aliada no Congresso disposta a aprovar a toque de caixa a sua (contra)reforma da previdência.

Ao que se seguiu uma (contra)reforma trabalhista fatiada, que continua em curso. Foi com a supervisão geral, ou a participação direta (com envio de tropas militares treinadas no Haiti), do governo federal petista que o processo de criminalização e militarização da gestão da questão social nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras avançou para o modelo consagrado no Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). E quando duas senhoras à minha frente apontam para uma manchete de jornal sobre a corrupção na Petrobrás e balançam a cabeça, como que a dizer “no PT não voto”, posso avaliar criticamente o uso eleitoral dessas denúncias, mas nunca poderia negar que os governos petistas foram atravessados pela corrupção. E governar exatamente como os partidos da ordem sempre fizeram no país tem um custo enorme do ponto de vista da consciência social.

Afinal, como confiar nos partidos de esquerda se quando aquele que representava as lutas da classe trabalhadora brasileira (ao menos na década de 1980), quando chegou ao poder, fez “tudo igual”? Daí porque sejam ridículas as tabelas e quadros que vejo circular nas redes sociais fazendo um ranking da corrupção no Brasil recente, medida em bilhões de reais, para tentar convencer de que a corrupção nos governos petistas foi menor que nos governos do PSDB. A que ponto chegamos...

O que poderia levar a um voto no segundo turno?

Resta, para a defesa do voto em Dilma, o “reformismo quase sem reformas” (para usar a expressão de Valério Arcary): as políticas sociais compensatórias e focalizadas, mas de massas, como o Bolsa Família; o acesso ao mercado pelos setores mais pauperizados da classe, via essas políticas, pequenos reajustes reais do salário mínimo e expansão do crédito; a expansão do sistema federal de ensino (escolas técnicas e universidades) e a manutenção de patamares menores de desemprego e maiores de formalização. Também esses argumentos pró-voto no “menos pior” precisam ser problematizados.

Após duas décadas de retirada de direitos e desemprego amplo, o custo da força de trabalho caiu a ponto de compensar para o capital empregar formalmente novos contingentes de trabalhadores, ainda assim precarizados, pelos mecanismos da terceirização ou pelo simples fato de que a grande maioria dos novos empregos gerados paga até 1,5 salário mínimo. Algo que dificilmente se sustentará indefinidamente com o agravamento da crise capitalista que se desenha para o próximo período.

Por outro lado, não há razões objetivas para que um eventual governo tucano recue nas políticas sociais compensatórias, afinal o PT demonstrou que o Banco Mundial tinha razão e é muito barato conter os efeitos sociais mais perversos das políticas neoliberais com programas como o Bolsa Família. A ampliação do poder de consumo via crédito representou mais uma enorme fatia de mercado para o sistema financeiro e contribuiu (subsidiariamente à política de juros elevados, alimentando uma dívida pública que remunera o capital portador de juros em escala astronômica) para os maiores lucros da história dos bancos atuantes no Brasil.

E, vindo do meio universitário, bastante suscetível ao apelo corporativo, lembro que a expansão (muito precária no que diz respeito às condições de trabalho/estudo) das instituições federais de ensino se fez após a garantia de subsídio milionário ao setor privado (via bolsas do PROUNI e empréstimos para pagamento das mensalidades do FIES), que se ampliou até o limite do “mercado educacional”, continua a ter um crescimento das matrículas maior que o setor público e hoje abriga quase 75% dos estudantes do nível superior.

Aliás, para os que se preocupam com os concursos públicos – congelados à época dos governos do PSDB e de fato reabertos nos governos petistas -, foi o presidente da CAPES do governo Dilma quem anunciou a intenção de precarizar a contratação de docentes para as federais, através de Organizações Sociais (OS), eufemismo para terceirização com gestão privada da força de trabalho, em modelo semelhante ao já executado por esse governo nos hospitais federais, via Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH).

Ainda que a velha fórmula da “farinha do mesmo saco” seja simplista demais para avaliar as diferenças entre as gestões tucanas e petistas, o fato é que uma análise política baseada em critérios de classe, como bem recomenda Valério Arcary em artigo publicado no Correiro da Cidadania , deve destacar que ambos os partidos governam de acordo com os interesses das classes dominantes.

Resta saber se a opção das principais frações da classe dominante, para conduzir os “ajustes” já anunciados por ambas as candidaturas, será pelo PT, com sua capacidade (abalada) de amortecer conflitos, ou pelo “estilo” mais truculento dos tucanos. Teremos instrumentos precisos de medição desse dilema no balanço final do financiamento das campanhas. No primeiro turno, com três candidaturas com chance, Dilma ganhou nesse quesito. Temos então argumentos mais que suficientes para recomendar o voto nulo?

Estabelecer pautas mínimas

Para o leitor que chegou até aqui, peço um pouco de calma e desculpas pela dimensão deste texto, mas lembro que fugir às saídas mais simples exige argumentar com mais elementos. Sim, há argumentos mais que objetivos para a indicação do voto nulo. Mas, se a recomendação for a única proposta nessas semanas finais da campanha eleitoral, como as organizações da esquerda socialista vão manter o diálogo com aqueles (e por onde ando são muitos) que, até o fim do primeiro turno, circulavam com adesivos e material de campanha do PSOL, PSTU e PCB e hoje vestem a camisa da candidatura Dilma, ainda que sob a sintomática simbologia das imagens de uma jovem guerrilheira (simulacro do desejo irrealizável de um voto à esquerda)? E como responderão aos setores bem mais amplos da classe trabalhadora que, na ausência da mudança de fato, acabarão votando em um Aécio disposto a vestir a fantasia de Marina e sua “nova política”?

Neste ponto, temos que reconhecer: a apropriação do discurso da “mudança” pela direita mais reacionária é resultado, principalmente, de uma demonstração inequívoca por parte do PT de que continua a governar para a manutenção da ordem, mas a esquerda socialista também tem sua parcela de responsabilidade. Ao não efetivarem, no plano nacional, desde as “jornadas de junho”, uma Frente de Esquerda reunindo PSOL, PCB, PSTU, como também os movimentos sociais mais combativos da classe trabalhadora, essas organizações perderam a oportunidade de aproveitar o momento eleitoral para apresentar uma alternativa de mudanças pela esquerda que pudesse ter uma audiência mais ampla, disputando de fato a consciência social. Não que o resultado eleitoral pudesse ser muito diferente, mas por certo que, atuando unitariamente, nossa capacidade de intervenção se potencializaria.

Oportunidade perdida. Mas, ainda não totalmente. Com uma boa dose de disposição para a unidade, pode ser possível para a esquerda socialista fazer política neste momento, indo além da simples indicação de voto. Em artigo para a Revista Espaço Acadêmico, Lúcio Flávio Almeida propõe um movimento pela esquerda de indicar o voto em Dilma, desde que atendida uma pauta mínima. É um excelente ponto de partida para discussão. Valério Arcary, em sua defesa do voto nulo, apresenta uma lista semelhante de propostas que o PT não se dispõe a discutir e que poderiam levar a justificativas mais consistentes para um apoio da esquerda a Dilma. Reproduzo, como referência, os exemplos de pauta apresentados por Arcary, que afirma que a situação seria diferente se:

“Dilma estivesse disposta a fazer uma reforma fiscal com impostos rigorosos sobre as grandes fortunas, manifestasse a intenção de romper com as chantagens do rentismo e, apoiada na mobilização dos trabalhadores, realizar uma auditoria e suspensão do pagamento da dívida pública. Se estivesse comprometida em garantir um aumento de verdade no salário mínimo, ou uma política de combate à privatização da educação, da saúde, do transporte urbano e da segurança. Se houvesse uma mínima possibilidade de que Dilma tomasse a iniciativa pela legalização do aborto, pela criminalização da homofobia, pela legalização do consumo de psicotrópicos. Se Dilma anunciasse a retirada das tropas do Haiti”.

Como Arcary e como Guilherme Boulos, no artigo já citado, também não acredito que o PT vá “apontar o rumo de transformações populares para o próximo mandato, o que não fez nos últimos doze anos”. No entanto, entendo que teria um efeito pedagógico exemplar, se os partidos de esquerda e as organizações mais combativas do movimento social se reunissem nos próximos dias e apontassem uma pauta de compromissos mínimos que viabilizaria o voto em Dilma no segundo turno das eleições. Para o processo eleitoral, tal procedimento teria um efeito limitado, sinalizando o que seria uma resposta realmente pela esquerda para o anseio por mudanças.

Ainda assim, diante da (falta de) resposta petista a tal pauta, os que apontam o voto em Dilma poderiam ir além do voto “útil”, em direção de fato a um voto “crítico”, assim como os defensores do voto nulo teriam ainda mais elementos para reforçar sua posição. De qualquer forma, um movimento nessa direção poderia ter uma importância muito mais ampla, contribuindo para construir a necessária frente de forças políticas e sociais que possa dar suporte para as lutas da classe trabalhadora no próximo período, no qual os “ajustes” já anunciados indicam tempos ainda mais difíceis, qualquer que seja o resultado das urnas.


Marcelo Badaró Mattos é historiador


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Maioridade penal: mitos e fatos


Diante de tantos fatos e evidências a esclarecer o engodo em que consiste a apresentação da redução da maioridade penal e do aumento do tempo de internação de adolescentes infratores como fórmulas eficazes para diminuir a criminalidade e a violência, cabe aos cidadãos e eleitores exigir que se eleve o nível do debate


por Rubens Naves (*)


(As fotos da cobertura sobre as prisões foram tiradas no Instituto Penal Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e fazem parte do ensaio "O Caldeirão do Diabo" de Andre Cypriano)



Mais uma vez a sociedade brasileira é bombardeada por uma campanha pelo retrocesso na legislação e nas políticas públicas relativas à responsabilização de adolescentes infratores. Desde a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, sempre que os cálculos político-eleitorais de lideranças e grupos conservadores revelam oportunidade de exploração da insegurança e do medo para obtenção de votos ou para desviar a atenção do eleitorado de questões “inconvenientes”, propostas para redução da maioridade penal voltam às manchetes.

A lógica das repetitivas campanhas pela redução da maioridade penal é simples. Entre os inúmeros episódios de violência que ocorrem em um país de quase 200 milhões de habitantes, destacam-se alguns casos especialmente atrozes, cujos perpetradores têm menos de 18 anos. Ao mesmo tempo, ignoram-se completamente as estatísticas, evidências e experiências nacionais e internacionais que demonstram a trágica falácia de “soluções” focadas na ampliação do aprisionamento, sobretudo no que tange aos adolescentes infratores. Opera-se, desse modo, uma estratégia de comunicação na contramão de um efetivo processo de esclarecimento, pautado pela racionalidade, pelo pragmatismo e pela ética, que deveria ser a meta e a missão de autoridades públicas, partidos políticos e profissionais da mídia.

Na campanha político-midiático-legislativa atualmente em curso, além da redução da maioridade penal, clama-se pelo aumento do tempo máximo de internação de adolescentes em conflito com a lei – de três para oito anos −, medida igualmente contraindicada.

Apresento, a seguir, as dez principais razões pelas quais a grande maioria dos especialistas e das organizações da sociedade civil que conhecem a situação dos adolescentes infratores – como a Fundação Abrinq/Save The Children – e trabalham por sua recuperação é contra a redução da maioridade penal.

1) É inconstitucional. O artigo 228 da Constituição Federal estabelece que é direito do adolescente menor de 18 anos responder por seus atos mediante o cumprimento de medidas socioeducativas, sendo inimputável em relação ao sistema penal convencional. E, de acordo com o artigo 60, os direitos e as garantias individuais estão entre as “cláusulas pétreas” de nossa Constituição, que só podem ser modificadas por uma nova Assembleia Nacional Constituinte.

2) É uma medida inadequada para o combate à violência e à criminalidade. Além de ser incapaz de tratar o adolescente como prevê o ECA, o sistema carcerário brasileiro tem uma infraestrutura extremamente precária e um déficit de mais de 262 mil vagas. Tratar o adolescente como criminoso e aprisioná-lo com adultos condenados contribuirá para aumentar o inchaço populacional das cadeias, favorecendo o aumento da violência e a aliciação precoce de adolescentes pelas redes do crime organizado, dentro e fora das prisões.

3) Inimputabilidade não é sinônimo de impunidade. O fato de o adolescente ser inimputável penalmente não o exime de ser responsabilizado com medidas socioeducativas,inclusive com a privação de liberdade por até três anos. E, como prevê o artigo 112 do ECA, em casos de adolescentes com graves desvios de personalidade, a internação pode ser estendida pelo tempo que se mostre necessário à proteção da sociedade.

4) O jovem já é responsabilizado. A severidade das medidas socioeducativas é estabelecida de acordo com a gravidade do ato infracional. O ECA prevê seis diferentes medidas socioeducativas, sendo a mais grave delas a restritiva de liberdade. A medida de internação só deve ser aplicada quando: 1) tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; 2) por reiteração no cometimento de outras infrações graves; 3) por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. A diferença entre o disposto no ECA e no Código Penal está no modo de acompanhamento do percurso dessa pessoa em uma unidade de internação. Pelo ECA e pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), o acompanhamento dos adolescentes autores de atos infracionais pelo Plano Individual de Atendimento (PIA) é o que favorece sua reintegração e a drástica diminuição dos índices de reincidência.

5) O número de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas é frequentemente superdimensionado. Da população total de adolescentes no Brasil, apenas 0,09% se encontra em cumprimento de medidas socioeducativas. E, ao considerarmos a população total do país, esse percentual é inferior a 0,01% da população.

6) O Sinase ainda não foi devidamente posto em prática nos estados brasileiros. Segundo dados de 2011 do Conselho Nacional de Justiça(CNJ), em somente 5% das ações judiciais envolvendo adolescentes existem informações sobre o PIA. Desses processos, 77% não aplicam o plano. Além disso, 81% dos adolescentes autores de ato infracional não receberam acompanhamento após o cumprimento de medida socioeducativa.

7) As taxas de reincidência no sistema de atendimento socioeducativo são muito menores que no sistema prisional. Em 2010, no sistema de atendimento da Fundação Casa, do estado de São Paulo, a reincidência foi de 12,8%. No sistema prisional convencional para adultos, essa taxa sobe para 60%. A grande maioria dos adolescentes tem chances concretas de traçar projetos de vida distantes da criminalidade, por isso não devem ser enviados para um sistema que reduz essas chances. Em municípios onde as medidas socioeducativas previstas no ECA e no Sinase são efetivamente aplicadas, como São Carlos (SP), as taxas de reincidência são ainda menores.

8) O aumento de intensidade da punição não reduz os crimes. Prova disso é a Lei de Crimes Hediondos, que, desde que começou a valer, em 1990, não contribuiu para a diminuição desse tipo de delito. Pelo contrário: os crimes aumentaram.

9) As crianças e os adolescentes são as maiores vítimas de violações de direitos. O número de adolescentes e crianças vítimas de crimes e violências é, no Brasil, muito maior que o de jovens infratores. Grande parte dos adolescentes infratores sofreu algum tipo de violência antes de cometer o primeiro ato infracional. Mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no território brasileiro em 2010 (Mapa da Violência 2012 – Crianças e Adolescentes do Brasil), e mais de 120 mil, vítimas de maus-tratos e agressões, receberam atendimento via Disque 100, entre janeiro e novembro de 2012 (Relatório Disque Direitos Humanos – Disque 100, 2012).

10) As crianças e os adolescentes são sujeitos de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e, desde 1990, devem receber a proteção integral prevista pelo ECA. A adolescência é uma fase da vida de grande oportunidade para aprendizagem,socialização e desenvolvimento. Atos infracionais cometidos por adolescentes devem ser entendidos como resultado de circunstâncias que podem ser transformadas e de problemas passíveis de superação. Para aumentar as chances de recuperação e de “reinserção” (em muitos casos, seria mais correto dizer “inserção”) social saudável, eles precisam de reais oportunidades – e, certamente, não de sofrer novas violências, conviver com criminosos adultos em prisões superlotadas e carregar o estigma do encarceramento.

Diante de tantos fatos e evidências a esclarecer o engodo em que consiste a apresentação da redução da maioridade penal e do aumento do tempo de internação de adolescentes infratores como fórmulas eficazes para diminuir a criminalidade e a violência, cabe aos cidadãos e eleitores exigir que se eleve o nível do debate.

O discurso do medo e da vingança é muito fácil e marca a história humana como promotor de enormes tragédias – algumas excepcionais e flagrantes, como as guerras declaradas, outras cotidianas e mais veladas, como as políticas de marginalização, punição e encarceramento em massa



(*) Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr, Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.

Ilustração: Andre Cypriano


sábado, 11 de outubro de 2014

‘Resultados eleitorais mostram guinada impressionante para a direita’



Por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação



Terminaram as eleições gerais, restando apenas algumas disputas de segundo turno para cargos executivos, como o federal. Como se previa largamente, candidaturas conservadoras foram bem sucedidas, enquanto aquelas que carregavam anseios populares demonstrados nas ruas tiveram pouquíssimas vitórias. É assim que a socióloga e professora da UNESP Maria Orlanda Pinassi analisa o pleito, em entrevista ao Correio da Cidadania.

“Parece que vivemos num sistema unipartidário com duas alas de direita se alternando. No Planalto, com hegemonia do PT; em São Paulo, do PSDB. Isso demonstra que os dois partidos acabam se complementando num projeto de desenvolvimento para o país”, afirma Pinassi, que, no decorrer da conversa, mostrou muito mais preocupação com as novas configurações dos parlamentos, tanto estaduais como federais, do que com o segundo turno.

“Nas três esferas, deputados estaduais, federais e senadores, houve uma guinada impressionante para a direita. Em termos políticos, é uma crise estrutural muito grande, um quadro preocupante. Vi uma clara fascistização nesse processo eleitoral”, pontuou. “Tenho um sentimento de que, até para acompanhar a direitização de todas as esferas parlamentares, veremos também uma direitização do Executivo”, diz ela, que dessa forma minimiza a importância, ao menos para os setores progressistas, de tomar lado em 26 de outubro.

Sobre a impressionante queda de Marina, Pinassi foi sucinta. “Ela não conseguiu aproveitar a oportunidade e sustentar, de fato, um projeto de mudança. E sua Rede da Sustentabilidade está fadada a reproduzir um discurso vazio de sentido político, já que existem dois partidos que oferecem condições melhores ao capital”, explicou a professora, que encerrou a entrevista com uma análise dos reflexos de junho de 2013 no processo eleitoral de 2014.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Primeiramente, o que pensa do fato de que, desinflada a ‘bolha’ Marina, PT e PSDB novamente estarão no duelo final pelo Planalto?

Maria Orlanda Pinassi: De certa forma, aconteceu o que eu previa em um artigo escrito antes da morte do Eduardo Campos, portanto, antes da bolha Marina. Até fiz uma nota de que, independentemente de Marina concorrer ou não como cabeça de chapa, não mudaria, de jeito nenhum, a regra do jogo que se repete há mais de 20 anos. Parece que vivemos num sistema unipartidário com duas alas de direita, PT e PSDB, se alternando. E repetindo a fórmula em São Paulo. É uma espécie de reflexo de nível nacional do que acontece no maior estado do país. No Planalto, com hegemonia do PT; em São Paulo, do PSDB.

Isso demonstra que os dois partidos acabam se complementando num projeto de desenvolvimento para o país, no sentido de que quem oferecer as melhores condições ao capital levará vantagem.

Correio da CidadaniaEm sua visão, o que proporcionou a queda de Marina Silva na reta final da eleição e a votação inesperada em Aécio Neves?

Maria Orlanda Pinassi: A Marina entrou nesse processo, num primeiro momento, porque ela vinha apresentando uma proposta de mudança política. A comoção da morte de Campos impactou, mas não foi o único ponto de sua ascensão.

A mudança política propalada por ela caiu num vazio, pois não conseguiu sustentar como se daria tal mudança. Como ela falava o tempo todo de “utilizar os melhores quadros de todos os partidos”, não parecia uma mudança efetiva. Ela não conseguiu aproveitar a oportunidade e sustentar, de fato, um projeto de mudança. E sua Rede da Sustentabilidade está fadada a reproduzir um discurso vazio de sentido político, já que existem dois partidos que oferecem condições melhores ao capital.

Correio da CidadaniaDe modo geral, como enxerga os resultados eleitorais verificados Brasil afora? Quais forças sobem e descem no jogo político-institucional?

Maria Orlanda Pinassi: Mais do que forças subindo ou descendo, vejo uma guinada radical para a direita. Forças que representam o pior conservadorismo no jogo político-institucional. É um quadro assustador, independentemente de quem vai assumir a presidência. Se a Dilma ganhar, será extremamente difícil conseguir governar com um parlamento tão à direita. Assim como imagino que será difícil a convivência para os partidos de esquerda – fundamentalmente o PSOL, que teve desempenho muito interessante nas eleições –, no sentido de emplacar algum projeto socialmente relevante. Mais do que conservador, trata-se de um parlamento reacionário, no sentido mais profundo da palavra.

Correio da CidadaniaDesse modo, a nova composição do Congresso talvez seja o produto mais preocupante das eleições?

Maria Orlanda Pinassi: Não tenha dúvida. Nas três esferas, deputados estaduais, federais e senadores. Houve uma guinada impressionante. Não sei se isso revela um descontentamento da população, até por haver uma ignorância política historicamente forte no país, que acaba carreando votos para um projeto quase fascista. Vi uma clara fascistização nesse processo eleitoral.

De outro lado, temos uma quantidade expressiva de votos nulos e brancos, que não podem ser desprezados. As duas dimensões, o “voto de protesto” nos Tiriricas da vida, personagens que servem muito bem a um projeto complicado de país, e tal quantidade de votos nulos e brancos, demonstram uma insatisfação muito grande.

Não podemos deixar de considerar tais dimensões do eleitorado brasileiro. Trata-se de um desafio para a esquerda, em todos os sentidos. Tanto a esquerda organizada em partidos políticos, como aquela fora dos partidos, mas que também está pensando o Brasil e todo o processo que vivemos.

Em termos políticos, a crise estrutural é muito grande, um quadro preocupante. Temos de pensar profundamente a respeito do que aconteceu, ao invés de nos centrarmos numa preocupação excessiva com o segundo turno, que é o que já percebo.

Não estou tão preocupada com o segundo turno.

Correio da CidadaniaO que espera, de todo modo, da disputa pelo segundo turno presidencial, entre Dilma e Aécio, a quarta consecutivo entre PT e PSDB?

Maria Orlanda Pinassi: Eu vejo uma grande possibilidade de o Aécio Neves ser a bola da vez do capital. Mas é bom ter claro que o PT e as forças que apostam no PT oferecem também grandes vantagens para o capital.

Basta ver o discurso da Dilma no recente encontro sobre o clima da ONU recentemente, quando perguntada sobre a questão do desmatamento. O PT, em fóruns internacionais, em geral, se posiciona de uma forma relativamente progressista sobre a questão ambiental. Mas, dessa vez, ela foi muito clara e falou: “o desmatamento é necessário para continuar em curso o processo do desenvolvimento”. Assim, conclui-se que Dilma é contra medidas que venham a barrar o desmatamento e a destruição ambiental. Ela acenou para os grandes grupos capitalistas, que estão aqui no Brasil, e suas grandes transacionais: “olha, eu não vou opor nenhum obstáculo para vocês”.

Dilma não é uma carta fora do baralho, mas me parece que – estou falando três dias depois das eleições – não tem definição alguma do quadro, dos apoios que vão ser dados, seja para um candidato, seja para o outro. No entanto, tenho um sentimento de que, para acompanhar a direitização de todas as esferas parlamentares, veremos também uma direitização do Executivo.

Posso errar completamente, mas parece haver uma tendência de as forças da ordem e do capital jogarem pesado no Aécio, porque as alianças do PSDB oferecem mais vantagens, neste momento histórico, para o tipo de desenvolvimento que o Brasil vem instalando desde os anos 90, alternando PSDB e PT. Temos um projeto de desenvolvimento  profundamente destrutivo e avassalador, e o capital exige uma política de desregulamentações cada vez mais agressiva, para que se dê o livre curso dos processos da mineração, do agronegócio etc. Processos que implicam em lógicas que têm acabado com a questão ambiental no Brasil, com as comunidades indígenas, camponesas, quilombolas. E têm acabado com a periferia das grandes cidades. Um projeto avassalador para o país e a América Latina.

Aécio e o PSDB oferecem, portanto, condições melhores para que essa agressividade capitalista se instale no país ainda mais. Por fim, uma conjectura pura: quem sabe o PT, tão competente na despolitização das classes trabalhadoras e na oferta de políticas de “alívio social”, volte daqui a uns 8 anos, para minimizar os estragos que o eventual período de PSDB e aliados no governo federal venham a causar?

Correio da CidadaniaDiante disso, acredita que as correntes de esquerda, o PSOL entre elas, devam declarar apoio em Dilma, como se fez majoritariamente em 2010?

Maria Orlanda Pinassi: Particularmente, para ter coerência com o que tenho defendido, penso que não se deve declarar apoio. Individualmente, tudo bem, como no caso do Marcelo Freixo. O próprio PCB indica um apoio crítico, naquela linha de “derrotar Aécio nas urnas e Dilma nas ruas”. Enfim, são opções. Esta não é a minha opção no momento. Penso que as esquerdas não deveriam se posicionar por um ou outro partido, porque não vejo diferença efetiva entre eles.

Correio da CidadaniaComo viu os resultados dos partidos mais à esquerda do espectro político nesse primeiro turno?

Maria Orlanda Pinassi: O PSOL, como disse, foi o partido de esquerda de melhor resultado, obviamente em função do fato de a Luciana Genro ter participado dos debates na televisão e, também, pelo seu ótimo desempenho, que achei brilhante. Teve posições muito firmes e claras e diria que, entre todos estes candidatos, ela foi a única que parecia ter um projeto social para o país. Isso acabou se refletindo na votação, digamos, expressiva em todos os setores do PSOL que disputaram as eleições.

Já os demais partidos foram prejudicados, porque não apareceram nos debates. E, quando apareciam, era de forma meio acachapante, humilhante, com tempos curtíssimos para falar... Me senti mal de ver pessoas muito respeitáveis no âmbito da esquerda tendo de se submeter a esse tipo de campanha, como se em um minuto se pudesse esclarecer algo ao público.

É claro que o atual sistema político e eleitoral prejudica profundamente a esquerda. A estrutura do debate impede qualquer participação efetivamente democrática. É um pluripartidarismo quimérico, pois não reflete todos os partidos. O desempenho foi, em consequência, condizente com a participação pífia que as esquerdas tiveram.

Algo a se repensar é se vale a pena continuar participando desse “jogo democrático”. Eu tenho sérias dúvidas sobre a efetividade dessa participação, que acredito expor a fragilidade de parte da esquerda organizada em partidos e que disputa o pleito. Uma parte que não reflete toda a esquerda, e que se mostra muito fragilizada quando aparece em meio a esse jogo.

Correio da CidadaniaFinalmente, é possível dizer que junho esteve em algum momento representado nas campanhas eleitorais?

Maria Orlanda Pinassi: Vi junho, sim. Ao contrário de algumas pessoas que dizem que não. Principalmente aquela segunda-feira, 17 de junho, em que as forças de direita foram para as ruas gritar “contra a corrupção” e exigir uma limpeza política no país. Ali houve uma mudança brutal de foco das reivindicações, que eram populares e legítimas, pelo transporte público gratuito, para uma “politicização” (conceito de inserção política alienada das decisões econômicas) do processo. Claro que não de forma geral, mas aquelas grandes manifestações acabaram refletindo muito isso, sobretudo, pelo papel da grande imprensa.

As palavras de ordem dos jovens da classe média reacionária – os coxinhas - que foram para as ruas no segundo momento dos protestos acabaram exitosas na eleição. Antes disso, foram responsáveis pela reforma política demandada por Dilma na ocasião, o que acabou refletindo no recente pedido de plebiscito. É incrível como aquela classe média teve força no processo. Esse é outro aspecto para reflexão.

Assim, as eleições, de maneira alguma, refletiram qualquer interesse pelas necessidades efetivas da população brasileira, da população mais pobre. Em nenhum momento, os candidatos que irão disputar o segundo turno discutiram ou apresentaram projeto interessado em solucionar qualquer problema social. E são muitas coisas acontecendo, greves explodindo no país, manifestações de indígenas, quilombolas, populações urbanas removidas para dar espaço para o “progresso”. Na maior parte delas, são manifestações muito críticas e descrentes da institucionalidade brasileira... Essas, de jeito nenhum e em momento algum, apareceram nos debates.

Portanto, as manifestações populares de junho não apareceram no debate. O que apareceu foi um anseio de uma classe média reacionária “anticorrupção”. Essa, sim, a maior protagonista dos debates e bastante bem sucedida nas eleições.


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