domingo, 27 de março de 2016

Rede Globo, a fábrica de ideologia


Por Elaine Tavares

A Globo mostrou ontem, mais uma vez, o que é ser uma fábrica de ideologia. Coloca como herói alguém que trabalha acima da lei, insufla o golpe, escancara sua posição. Nada de novo para nós que fazemos a crítica cotidiana. A mídia comercial é o braço armado do sistema. Há quem diga que não é bem assim, que não é tanto poder sobre as pessoas. Mas é. Negar isso é fechar os olhos para a realidade.


A onda fascistóide que varre o país desde há tempos só cresce, e muito desse crescimento vem da atuação da mídia. Não digo que as pessoas sejam tábulas rasas, que qualquer informação passada pela televisão se encrava e domina. Não. Isso seria estúpido e equivocado.

Mas, Theodor Adorno, um dos filósofos da escola de Frankfurt já deu a pista nos anos 50 sobre como essa fábrica de ideologia funciona e como acaba influindo na consciência coletiva. No seu estudo sobre a personalidade autoritária, Adorno mostra que existem na sociedade os fascistas em potencial. Essas pessoas seriam aquelas que já estariam abertas às tendências antidemocráticas da sociedade e, com a instigação sistemática, fatalmente se tornariam autoritárias e passíveis de explicitação do ódio.

Esse trabalho foi feito por Adorno para tentar explicar algumas tendências autoritárias na sociedade estadunidense logo após a segunda grande guerra, e ele baseava suas conclusões na experiência vivida pelo nazismo – pouco tempo atrás, que acabou levando ao fanatismo um país inteiro. Ele mostra que as tendências fascistas não estão ligadas ao desconhecimento, à ignorância ou a falta de informação. Se fosse assim não teríamos tantos intelectuais caminhando por essas veredas. A tendência fascista, para ele, é algo que está na consciência e, se bem trabalhada, pode aflorar até mesmo nas chamadas "pessoas de bem”.

O fato é que a classe dominante usa os meios de comunicação para insuflar o ódio a tudo aquilo que apareça como um entrave ao seu domínio. Mentiras e preconceitos, repetidos e repetidos, provocam a insurgência do fascista em potencial, aquele que no íntimo do seu ser precisa de um líder, um patrão, um chefe, alguém autoritário e mandão para definir os caminhos. Ele mesmo não se sente seguro em definir seu próprio rumo.

E é aí que a televisão – fábrica de ideologia – entra. Como o espaço mais propício para a fermentação do ódio e para a construção de uma sociedade autoritária.

Não é sem razão que os meios de comunicação comerciais estejam sempre a massacrar os negros que vivem nas favelas, os pobres, os índios, os trabalhadores que se revoltam, as gentes que se rebelam, os de "abajo”. Todas essas parcelas da sociedade são demonizadas diuturnamente.

Milhares de trabalhadores públicos em greve fazendo passeata em Brasília não entram no plantão da Globo, mas meia dúzia de reacionários gritando em frente ao Palácio da Alvorada são elevados ao patamar de "heróis da pátria”.E o que é pior, tudo isso acaba sendo potencializado nas redes sociais, que reproduzem os mesmos meios, as mesmas ideias, à exaustão.

Na histeria dos fascistas em potencial já não cabem mais a lei, as regras definidas para viver em sociedade, nada. Só o que vale é fala e a indicação do líder. Com ele vão ao inferno e podem até matar a própria mãe. Dura realidade. Porque um líder que se vale do ódio pode voltar-se contra os seus próprios comandados a qualquer momento, basta que apresentem uma fagulha de pensamento crítico.

Registros disso podemos encontrar aos milhares na história da humanidade. Na arte, um filme que mostra bem essa construção da sociedade autoritária é "O senhor das moscas”. Vale a pena ver e pensar um pouco sobre o que vivemos agora mesmo no Brasil e na América Latina.

Ontem assistimos a mais um capítulo das investidas da classe dominante para abocanhar o poder de governar de direito. Porque de fato nunca esteve fora das decisões. Apenas suportou a aliança com o Partido dos Trabalhadores porque havia uma conjuntura continental que favorecia a um avanço da ideia de socialdemocracia, de avanço de políticas públicas, de políticas compensatórias. Mas, agora que por toda a América Latina a mão dura do capital vem recuperando seu poder, já não é mais preciso esconder-se na pele de cordeiro.

O lobo volta arreganhar os dentes sem vergonha de ser quem é. E, nesse processo de reagendar novas formas de ser governo, nada melhor que espalhar o germe do autoritarismo que está latente em boa parte das gentes. Para isso tem a Globo, a Record, a Band, a Folha e toda a sorte de seguidores.

A mão dura, quando é para ser usada em favor dos pobres, não serve. Aí, quem a usa é acusado de louco, ditador e outros quetais, como foram alcunhados Fidel, Che, Chávez. Hoje, vimos nas ruas, a elite e a classe média – em sua maioria – babando, pedindo o regime militar.

A favor de quem? Dos pobres é que não. Querem o autoritarismo para garantir privilégios. Mal sabem que quando se acorda o monstro, ele pode pisar em qualquer um.


FONTE: Adital

terça-feira, 22 de março de 2016

Brasil: um país de golpes


A história da República Brasileira é uma história de golpes das elites contra o povo e contra a democracia. Os períodos de ditadura e autoritarismo se revezam com períodos de tênue abertura democrática e de aumento da cidadania. As elites nacionais e suas instituições não toleram a proximidade popular e não querem vivenciar uma verdadeira nação brasileira.




Por Maria Dolores de Brito Mota*


Como entender uma nação? Nação não é um território delimitado, com uma população específica sob a jurisdição de um estado e um conjunto de leis. Benedict Anderson nos dá a melhor das definições de nação ao entendê-la como uma comunidade política imaginada – e imaginada porque é limitada e ao mesmo tempo soberana. Ela é imaginada por que mesmo nas minúsculas das nações seus membros jamais conhecerão todos os compatriotas embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles, pois acreditam numa história comum e partilham dos mesmos sistemas culturais.

A única coisa que pode dizer que uma nação existe é quando muitas pessoas se consideram uma nação. Esse sentimento de comunhão não faz parte do imaginário das elites no Brasil. Sempre tentaram se diferenciar do povo, sejam pobres, negros, índios, nordestinos, nortistas, trabalhadores. Na história Brasileira diferentes formas de Republicas se sucederam por meio de golpes que tinham como objetivo alijar o povo da democracia e do acesso aos direitos de cidadania. A participação do exército na vida política nacional foi uma constante, cujo uso da força e da violência sempre esteve a serviço da manutenção dos privilégios das elites, sejam agrárias, industriais, financeiras, midiáticas.

Republica Velha - Republica das Espadas (mobilização x golpe/ditadura)

Em 1889 a Proclamação da República foi um acordo entre as elites agrárias e o Exército que aceitaram organizar o Estado brasileiro nos moldes republicanos depois do fim da escravidão. Foi criado um estado autoritário, presidido por marechais, para garantir os privilégios das classes dominantes e a negação de direitos às classes exploradas.

Passou depois para as mãos das oligarquias, iniciando a República Oligárquica em 1894. O país industrializou-se, conheceu revoltas urbanas e rurais decorrentes das mudanças sociais e políticas pelas quais passaram o país. Destruiu Canudos (1896-1897) e a Revolta da Vacina (1904), Tenentismo, Caravana da Esperança e outras rebeliões.

As novas pressões políticas e sociais esgotaram as oligarquias paulistas e mineiras que abriram alas para a Revolução de 1930, o ápice desse processo, que resultou na Era Vargas.

Era Vargas – (golpe/articulação oligárquica-militar)

As pressões populares deram inicio a um novo ciclo através de um golpe armado liderado pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, que depôs o presidente da república Washington Luiz e impediu a posse do eleito Júlio Prestes, elevando Getúlio Vargas ao poder, que permaneceu como presidente até 1945. Durante seu Governo Provisório (1930-1934), o novo presidente conseguiu contornar os conflitos entre as elites nacionais, principalmente com a vitória sobre a oligarquia e burguesia industrial paulista durante a Revolução Constitucionalista de 1932.

A promulgação da Constituição em 1934 consolidou um acordo entre as várias frações da classe dominante nacional. Porém, não puderam conter a insatisfação dos setores populares. O governo enfrentou a Intentona Comunista de 1935 e usou esse conflito para iniciar um período ditatorial violento em 1937.

A Ditadura Vargas (articulação burguesia-militares/golpe/ditadura)

Uma nova Constituição foi adotada e o Congresso foi fechado. Como forma de conter a insatisfação popular e conseguir aumentar o poder de consumo do mercado interno, Vargas promulgou uma série de leis que garantia alguns direitos à classe trabalhadora urbana, além de proporcionar um nível de renda que impulsionasse o esforço de industrialização. A industrialização e a modernização do Estado brasileiro garantiram condições de fortalecimento tanto da burguesia industrial quando da tecnocracia das empresas estatais e da administração pública.

República Liberal Populista (golpe x abertura e desenvolvimento)

Em 1945, Vargas, enfraquecido, é derrotado por um golpe comandado pelo general Eurico Gaspar Dutra, que o retirou do poder. Uma nova Constituição foi adotada em 1946. As mudanças sociais decorrentes da urbanização e da industrialização produziram novas forças políticas que reivindicavam mais mudanças na sociedade e no Estado brasileiro, o que desagrava as elites conservadoras. Vargas retorna eleito em 1950, num período marcado por várias tentativas de golpe de Estado, levando ao seu suicídio em 1954.

O governo de JK (1956-1961) avançou no desenvolvimento industrial em algumas áreas, mas não pôde resolver o problema da exclusão social na cidade e no campo. Essas medidas de mudança social iriam compor a base das propostas do Governo de João Goulart. O estado brasileiro estava caminhando para resolver demandas há muito reprimidas, como a reforma agrária. Frente ao perigo que representava aos seus interesses econômicos e políticos, as classes dominantes mais uma vez articularam um golpe de Estado, com a deposição pelo exército de João Goulart, em 1964.

Ditadura Militar

Essa conhecemos mais de perto, desde 01 de abril de 1964, a Ditadura Militar foi um dos períodos mais repressivos da História da República. Vários grupos políticos cassados e seus membros torturados e mortos através de uma repressão estatal, legal ou clandestina, que impediu o exercício da oposição. A oposição se tornou controlada através de um único partido.

Nos anos setenta, a sociedade foi se reorganizando em Comunidades de Eclesiais de Base, Associações de Moradores, Movimento Feminino pela Anistia, movimentos de mulheres e feministas, Sindicatos, até surgir um vigoroso movimento sindical em greves que tomaram o país em 1978 e 1980. Tudo pedindo o fim da ditadura e a democratização do país.

A Nova República (mobilização popular x articulação das elites e democratização)

As ruas se encheram de pessoas em amplas e empolgantes passeatas pelas Diretas Já, pedindo o retorno das eleições presidenciáveis e o retorno dos generais aos quartéis (‘aos quartéis os generais, o povo não quer mais’). Mas as elites politicas e econômicas em conchavos se decidiram por um colégio eleitoral que elegeu Tancredo Neves e José Sarney, para um mandato que aí sim, seria sucedido por uma chapa eleita pelo voto dos cidadãos.

Sucederam-se Collor e FHC, representantes de classes privilegiadas e, em 2002, é eleito Lula, do Partido dos Trabalhadores, um representante das classes trabalhadoras, apoiado pelo conjunto das forças de esquerda e populares. Uma novidade radical no Brasil, mesmo que essa eleição tenha sido resultado de uma grande articulação com setores conservadores da direita.

Impeachment para um novo golpe

Com uma politica de governo ambígua, combinando uma profunda linha social que inaugurou as politicas públicas de ampliação e garantia de direitos e uma linha econômica tradicional, desde então o PT tem resistido aos próprios erros cometidos em nome da governabilidade em conchavos com a direita e permissividade da estrutura patrimonialista e a pressão das elites tradicionais aliadas ao quarto poder, representado pelo cartel da grande mídia brasileira e pelo cartel financeiro.

Nesse período a sociedade experimentou vivenciar cidadania, conquistou direitos, ampliou a sua consciência cívica e quer mais. O novo povo que emergiu desse processo não interessa aos grupos que sempre se mantiveram no poder à custa da servidão social das massas trabalhadoras e pobres que trocavam voto por favores, mas que agora sabem que têm direitos.

Estamos assistindo às manobras para a articulação de um novo golpe através do artifício de um impeachment que está dividindo o país entre os democratas e os golpistas conservadores, herdeiros do antigo regime senhorial e segregacionista que fez do Brasil um país de profundas desigualdades, exclusões e violências.

Não é a Dilma que querem impedir. Querem impedir uma sociedade cidadã construir-se como nação.


*Professora associada do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (UFC)


FONTE: Adital

sábado, 19 de março de 2016

Moro cometeu crime e deve ser preso, diz professor de Direito da USP


Por Railídia Carvalho e Joana Rozowykwiat, do Portal Vermelho


Professor titular de Direito Penal da USP, Sérgio Salomão Shecaira afirmou, na noite desta quinta (17), que o juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato, cometeu um crime ao divulgar os grampos envolvendo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a presidenta Dilma Rousseff e deve ser preso. Em uma fala repleta de críticas ao judiciário, ele participou, ao lado de outros juristas de ato em defesa da democracia, realizado em São Paulo, na Faculdade de Direito da USP. 

   “O poder judiciário está, sim, acovardado, a ponto de ter modificado o princípio de presunção da inocência”, disse criticando a decisão do Supremo que autorizou a prisão de pessoas condenadas em segunda instância. Shecaira destacou trecho do artigo que o juiz Sérgio Moro escreveu sobre a Operação Mãos Limpas, da Itália, no qual ele ressaltou que os responsáveis pelas investigações fizeram largo uso de vazamentos para imprensa.

“Então ele [Moro] já sabia qual era o caminho: ele dá uma decisão e vaza para a imprensa simpatizante, das seis famílias que dominam a mídia”, criticou, lembrando que o golpe civil-militar de 1964 também foi midiático. “E hoje um golpe está em curso no país. E não nos resta outra saída a não ser irmos às trincheiras em defesa do estado democrático de Direito”.

Depois de citar parte da lei de interceptação telefônica, ele foi enfático ao defender que a quebra do segredo de Justiça é crime. Um dia após Moro tornar públicas conversas pessoais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a presidenta Dilma Rousseff, Shecaira defendeu que o “todo poderoso” juiz de Curitiba cometeu, sim, um crime, e deve ser punido por isso. 

“O sigilo ser quebrado pelo próprio juiz, invocando o interesse da nação – e não é ele que interpreta os interesses da nação, pois nem foi eleito pelo povo – significa que ele cometeu um crime e isso tem que ser levado às barras dos tribunais”, pregou, sob aplausos efusivos da plateia, que gritava “Moro na cadeira”.

Segundo o professor, na “manifestação branca” do último domingo na Avenida Paulista, não estava a verdadeira população brasileira, porque a população negra não estava lá. “Quem aqui está ao lado da verdadeira população brasileira, estamos pela legalidade e pela prisão do juiz Sérgio Moro”, encerrou.



sexta-feira, 18 de março de 2016

Juízes pela Democracia: atuação da mídia pode desacreditar Judiciário


Por Cristina Fontenele


André Augusto Salvador Bezerra é juiz de Direito no Estado de São Paulo, doutorando (DIVERSITAS/USP)e mestre (PROLAM/USP) pela Universidade de São Paulo (USP), presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Esta organização da sociedade civil brasileira ganhou ainda mais importância estratégica após a divulgação, esta semana, pela Polícia Federal brasileira de gravações telefônicas envolvendo a presidenta da República, Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT) e o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva.

"Qualquer ato do Estado que invada a privacidade de algum cidadão tem de ser visto com cautela”, explica Bezerra. "É necessária muita cautela em um caso como este [envolvendo a presidenta da República], cujas discussões públicas nele envolvidas já saíram da esfera da racionalidade há muito tempo”.

André Augusto Bezerra, juiz da AJD. 

Apesar de aparentemente não haver ilegalidade na ação, pois o alvo seria o ex-presidente, que, então, não ocupava um cargo público, o questionamento é se o ato da PF não envolveria uma utilização política do conteúdo das gravações, já que estas foram vazadas para a Rede Globo de Televisão, que já não disfarça suas preferências políticas contrárias ao atual governo.

"Se [o vazamento] ocorreu fora da lei, não tenho dúvida em afirmar que a credibilidade do Judiciário estará manchada”, dispara o juiz. "Nunca vejo, com simpatia, grandes operações policiais em nome do combate à corrupção, ainda mais se nelas se realizam verdadeiros shows transmitidos pela mídia”.

Confira a entrevista exclusiva concedida à Adital.

Adital: Como avalia a quebra do sigilo telefônico do ex-presidente Lula?

Qualquer ato do Estado que invada a privacidade de algum cidadão tem de ser visto com cautela. A necessidade do ato deve ser avaliada com muito cuidado. O caso do ex-presidente não é exceção.

Adital: A divulgação da conversa com a presidenta Dilma extrapolou os limites? Quais as repercussões do vazamento desta conversa?

É difícil verificar se extrapolou os limites. Cabe às corregedorias das autoridades envolvidas verificarem esse fato. Quanto às repercussões, todos nós vemos, agora: um Brasil tenso, dividido e ainda mais intolerante. Preocupante.

Adital: A divulgação da conversa afeta a credibilidade do Judiciário? Quais as expectativas com esse ato?

Se a divulgação se deu dentro dos parâmetros legais, não afeta. Mas, se ocorreu fora da lei, não tenho dúvidas em afirmar que a credibilidade do Judiciário estará manchada. É necessária muita cautela em um caso como este, cujas discussões públicas nele envolvidas já saíram da esfera da racionalidade, há muito tempo.

Adital: Como analisam a condução da Operação Lava Jato, nos últimos meses? Que decisões tomadas estariam em desacordo com a lei?

Nunca vejo com simpatia grandes operações policiais, em nome do combate à corrupção, ainda mais se nelas se realizam verdadeiros shows transmitidos pela mídia. É sempre preciso ter em mente que a corrupção é um problema histórico e estrutural do Brasil, que não se resolverá pela mera prisão de alguns. Uma operação da dimensão da Lava Jato sempre tem o problema de ensejar a falsa crença de que o direito penal (seletivo por excelência) pode resolver nossos problemas. Jamais resolverá.




Adital: Como avalia a atuação do juiz Sergio Moro e que repercussão a figura dele tem no atual contexto político brasileiro?

Não gosto de avaliar individualmente autoridades judiciais. Cabe a quem o controla juridicamente fazer este papel.

Adital: O senhor acredita em um golpe em curso no Brasil?

Nada é impossível. A história do Brasil nos ensina que devemos estar sempre alertas. Os ânimos acirrados e a extrema polarização dos debates são bons ingredientes para a figura do golpe, ainda que não mais se dê pela figura dos militares, mas por instrumentos mais sutis e sofisticados, como decisões judiciais.

Adital: Como avalia o episódio da condução coercitiva de Lula para depor na Polícia Federal?

A execução da medida configurou um verdadeiro show, a violar os mais elementares ditames do Estado Democrático de Direito. Lamentável.


Colaborou Paulo Emanuel Lopes


FONTE: Adital

segunda-feira, 14 de março de 2016

A vida dos negros não importa


A vida das pessoas negras não importa, e o status quo deve ser conservado para que indivíduos brancos possam continuar a controlar praticamente tudo.


Por Charles R. Larson - CounterPunch




A vida dos negros não importa. Se importasse, a expressão Black Lives Matter não seria necessária. Ela nunca importou, a começar pelas origens escravagistas do nosso país. Africanos eram escravos, porque as pessoas brancas não os consideravam humanos. A Constituição, de certa forma, apoiou isso. Após a Guerra Civil [ou Guerra de Secessão], os negros não eram mais tecnicamente considerados escravos, embora fossem amplamente tratados da mesma forma. Jim Crow garantiu isso - e a maioria dos aspectos de suas vidas (tanto no Sul como no Norte) foram projetados para mantê-los subservientes: educação, habitação, empregos e, sobretudo, a justiça.

Essa é uma trajetória política que continua até hoje. O movimento Black Is Beautiful ajudou a melhorar o senso de dignidade dos americanos negros, mas não a forma como as pessoas brancas olham para eles. A prova disso? Em primeiro lugar, a luta de Barack Obama para escapar do racismo (principalmente encoberto) desde a sua primeira campanha. "Você mente!" Um congressista gritou para Obama durante um de seus Discursos sobre o Estado da União. Isso teria acontecido se Obama fosse branco? Além disso, houve pelo menos cinquenta tentativas para tentar eliminar o Obamacare. Sem contar o mantra do Partido Republicano: “Nosso objetivo é garantir que Obama seja presidente de um só mandato”. Os conservadores preferem destruir o país do que dar a Obama um pingo de crédito para qualquer coisa. Eles estão determinados a diminuir o seu lugar na história. E têm trabalhado em tempo integral para que isso aconteça.

A vida dos morenos também não importa muito: os indígenas e os latinos foram frequententemente rebaixados na gritaria dos debates presidenciais republicanos, a fim de atender a maioria branca do país. Na prática, isso significa se submeter aos homens brancos de baixa escolaridade, com poucas perspectivas de emprego, que têm visto a sua sorte ameaçada por quase quarenta anos. A ascensão do feminismo na década de 1970 deu um belo susto neles, mas esses caras brancos sempre souberam que, enquanto persistisse a discriminação contra os negros, eles seriam escolhidos no lugar de candidatos negros mais qualificados em uma entrevista de emprego. Finalmente, a diferença educacional - especialmente entre mulheres pretas e de homens brancos das classes baixas - se tornou tão óbvia, que estes homens brancos começaram a perder a cabeça. Eles morrem de medo em relação a um futuro em que os brancos seriam uma minoria nos Estados Unidos. Seus privilégios, unicamente baseados na cor de sua sua pele, estão prestes a se esgotar.

Isso explica, em grande parte, o fanatismo dos candidatos presidenciais republicanos e sua crença de que a vida negros não importa. Os latinos foram adicionados ao seu lamúrio no início da campanha. Então, quando a oportunidade do terrorismo chegou - estenderam a sua indignação para os muçulmanos. Como é irônico que os candidatos presidenciais republicanos tenham abraçado a cartilha do Estado-Islâmico: aterrorizar a vida das pessoas, até que elas se alegrem com o seu dircurso racista. Quem será adicionado à lista em seguida? Os asiáticos, por minar a nossa economia? Judeus, novamente, já que muitos dos comentaristas liberais são judeus? Nem sequer mencionam os LGBTs. Então, racismo e homofobia estão vivos e bem-alimentados nos EUA, como eles sempre estiveram.

O país está em uma terrível bagunça. Enfrentamos problemas enormes enquanto uma nação, e nossos representantes eleitos costumam ignorá-los. Donald Trump assegura a seus seguidores que vai consertar tudo, uma vez eleito, mas ele não providenciou muitas ideias sobre como pretende fazê-lo. Os democratas temem que o racismo nos leve de volta para os campos de concentração, pras fronteiras fechadas ou pior. E um número decrescente de homens brancos com baixa escolaridade e pouco qualificados acreditam que tudo que precisam fazer é atacar Centros de Planejamento Familiar [onde se realizam procedimentos para interrupção de gravidez] e os problemas do país desaparecerão. Seus representantes ligeiramente mais informados no Congresso acreditam que os problemas de crescimento e envelhecimento populacional podem ser resolvidos com financiamento reduzido. Alguns deles bradam por outra guerra, mas eles não querem financiá-la aumentando impostos ou restabelecendo um projeto que poderia prejudicar o futuro dos seus próprios filhos e filhas.

A vida dos negros não importa, mas também as demais não importam muito, desde que o status quo possa ser conservado e indivíduos brancos (de todos os níveis econômicos e educacionais) possam continuar a controlar praticamente tudo. Sua negação da mudança climática denuncia seu medo de perder a capacidade de controlar o mundo que eles têm mantido ao seu alcance por tantos anos. Como Alberto Moravia escreveu em Which Tribe Do You Belong To?? (1974),

"Não há maior sofrimento para os homem do que sentir que seus fundamentos culturais estão ruindo sob seus corpos". Moravia escrevia sobre um outro contexto e sobre um outro tempo. Mas, se trocarmos a palavra "sofrimento", em sua observação, por "medo", é possível compreender o contexto dos homens brancos norte-americanos e o sofrimento que causaram às pessoas de outras cores, etnias, gêneros e religiões.

________

Charles R. Larson é professor emérito de literatura da American University em Washington, D.C. Seu email é: clarson@american.edu. E seu twitter: @LarsonChuck.


Tradução por Allan Brum

FONTE: Carta Maior

sexta-feira, 11 de março de 2016

Contra o golpe: ativista denuncia parcialidade do Poder Judiciário


Por Cristina Fontenele


Com mobilizações de direita e esquerda previstas para o mês de março, e após o episódio envolvendo a coerção do ex-presidente Lula Inácio Lula da Silva, para depor na Polícia Federal, no último dia 05 de março, o cenário político do Brasil atravessa momentos de acirramento. Especialistas questionam a atuação do Poder Judiciário e uma "paralisia” do Governo em reagir à crise.

"Assusta a incapacidade do governo Dilma de reagir a tudo isso. É um governo paralisado, atordoado, sem identidade política, sem interlocução com a sociedade. Isso só agrava a crise”, é o que avalia José Antonio Moroni, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e da Frente Brasil Popular. Em entrevista à Adital, o ativista diz que o atual cenário político brasileiro é complexo, devido a vários fatores. Desde o esgotamento do modelo de se fazer política até a negativa de setores partidários, empresariais e da sociedade em não aceitarem uma regra básica da democracia, que é o respeito ao resultado das eleições, realizadas em 2014.

Moroni enfatiza que é preciso diferenciar o que é disputa eleitoral e o que é disputa pelos rumos da sociedade. Segundo ele, apesar dos avanços dos últimos anos, em termos de sociedade, governo e políticas públicas, determinados segmentos não aceitam esses progressos e, por medo de ficarem longe do poder por mais tempo, "pegam carona” na justa indignação motivada pela corrupção. Somado a isto, a "paralisia” do governo da presidenta Dilma Rousseff [Partido dos Trabalhadores – PT] estaria levando as pessoas a não quererem esperar 2018 para a troca de comando via processo eleitoral.

Para José Antonio Moroni, do colegiado de gestão do Inesc, diante de um país "a ponto de explodir", não
se vislumbra nenhuma força política com capacidade de estabelecer um processo de superação da crise.

Para José Antonio Moroni, do colegiado de gestão do Inesc, diante de um país "a ponto de explodir”, não se vislumbra nenhuma força política com capacidade de estabelecer um processo de superação da crise.

Porém, independente do desfecho da crise política, Moroni destaca que as mulheres não vão voltar para as cozinhas, os/as negros/as não vão voltar para a senzala, os gays não vão voltar para os armários, os jovens das periferias urbanas não vão ficar confinados/as e vão, sim, para as universidades públicas, os/as camponeses/as vão continuar a produzir alimentos orgânicos e a lutar contra o agronegócio, os/as trabalhadores/as não vão aceitar serem "peças das engrenagens do capital". "Esta é uma disputa permanente, que fazemos na sociedade e que tem repercussão nas disputas eleitorais e nas políticas públicas”.

Dentro desse cenário político, Moroni cita as denúncias de corrupção e a seletividade nas investigações da Operação Lava-Jato. "Por exemplo, as delações premiadas, quando é em relação ao PT, se tornam verdade, em relação ao PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] nem são investigadas. O presidente atual do PSDB, senador Aécio Neves, foi citado em varias delações, mas isto não gerou nenhum processo de investigação”. Para Moroni, a incapacidade do PT em fazer uma autocrítica só acelera esse processo de degeneração da política. Ele defende, portanto, que o Partido avalie seus métodos de governar e faça uma autocrítica para a sociedade.

Referindo-se a um "Parlamento paralisado”, refém dos interesses do grupo de Eduardo Cunha [deputado federal pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – Rio de Janeiro, e presidente da Câmara], Moroni destaca que também colaboram para o cenário em crise as dúvidas quanto à parcialidade do Poder Judiciário nas investigações e o desrespeito aos preceitos constitucionais. A parcialidade ainda dos meios de comunicação, e a crise econômica e social, estariam também tornando o Brasil um país "a ponto de explodir”.

Contudo, Moroni alerta que não se vislumbra nenhuma força política com capacidade e condições de estabelecer um processo de superação dessa crise. "Esse cenário é propicio para aventuras políticas, principalmente de direita, mas abre possibilidades, por exemplo, à luta pela convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva e soberana, com possibilidade de construção de uma nova síntese política”.

O ativista questiona a atuação do Juiz Sérgio Moro, que
encarnou o papel do justiceiro, o que seria de uma enorme
gravidade.
Sobre a coerção do ex-presidente Lula, Moroni entende como "abuso” o fato de se conduzir alguém de forma coercitiva para depor, sem uma convocação prévia. "A Lavo Jato já fez isso 117 vezes”. No entanto, Moroni lembra que esta é uma pratica cotidiana, vivenciada pelas populações pobres e das periferias urbanas, que veem a polícia entrar em suas casas sem mandato, e levar para as delegacias sem intimação. "Precisamos questionar e nos revoltar contra tudo isso e não apenas porque levaram o Lula. Penso que o episódio deva nos levar a nos questionar a forma com os aparatos de segurança do Estado atuam”.

Para Moroni, existe, sim, uma estratégia de desconstruir o ex-presidente Lula como liderança política, bem como o PT. "Vou mais além, é desconstruir todo um campo político de esquerda, mesmo que possamos considerar vários grupos que estão nessa leva não sejam mais de esquerda. Essa estratégia fere o mais elementar principio da convivência que é o de respeitar o direito do outro de existir”. Um processo que, para Moroni, é muito perigoso, tendo em vista que todas as ditaduras, o fascismo, o nazismo, o stalinismo romperam com este princípio.

Quanto à atuação do juiz federal Sérgio Moro, o ativista destaca que ninguém está acima do bem e do mal e que o juiz encarnou o papel do justiceiro, o que seria de uma enorme gravidade. "Somos todos e todas fruto desta mesma sociedade e das relações sociais, políticas, econômicas e culturais produzidas por ela. É um processo dialético”. Alerta que é preciso avaliar com profundidade o porquê de a sociedade precisar da figura do justiceiro. "Tem margem para o surgimento desta figura por que não se acredita mais nas instituições, principalmente nas instituições de Estado e na política como o espaço da construção das soluções dos problemas enfrentados pelo povo”.

Quanto às mobilizações dos grupos de direita e esquerda, previstas para este mês de março, Moroni acredita em possíveis riscos de confronto violento, pois segundo ele a sociedade vive um processo de radicalização, não de ideias, mas de agressão física. "É aquilo que descrevi como o desejo de eliminar o outro. Este processo tende a se agravar e muito se as oposições e setores da sociedade levarem adiante o não reconhecimento dos resultados das urnas. Seja via o impedimento da Dilma, via Congresso, ou a cassação da chapa via TSE [Tribunal Superior Eleitoral]”.


FONTE: Adital

segunda-feira, 7 de março de 2016

A crise na previdência é forjada!


Em tese de Doutorado, pesquisadora denuncia a farsa da crise da Previdência no Brasil forjada pelo governo com apoio da imprensa.


Jornal da UFRJ


Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.

O superávit da Seguridade Social – que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência – foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira – condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005” (clique e leia a tese na íntegra).

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.

Jornal da UFRJ: A ideia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?

Denise Gentil: A ideia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfarestate (Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.

Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.

Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.

Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?

Denise Gentil: Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.

O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.

Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).

Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.

Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.

Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.

Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?

Denise Gentil: Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.

É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, frequentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.

Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.

Jornal da UFRJ: E são recursos que retornam para a economia?

Denise Gentil: É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.

Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?

Denise Gentil: A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou conhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.

Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?

Denise Gentil: É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.

Jornal da UFRJ: O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?

Denise Gentil: A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamando de “Orçamento Fiscal e da Seguridade Social”, no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o “rombo” da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?

Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?

Denise Gentil: Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.

Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?

Denise Gentil: Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.

Jornal da UFRJ: A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?

Denise Gentil: Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.

Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.

Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.

Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?

Denise Gentil: A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre “crise” da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...