quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Alimentos: o ‘manual’ da indústria para frear a regulação na América Latina


                                                                  IN AGENDA REGULATÓRIA, CAPA, DESTAQUE


Por João Peres


Na Pátria Grande da Obesidade, dividir para dominar é a palavra de ordem. Criar confusão nas evidências científicas, ameaçar com ações internacionais e acionar amigos poderosos são o centro da ofensiva. Se nada funcionar, vai na porrada

Um segmento econômico deve acender o sinal amarelo para o risco de sofrer regulação quando alguns fatores se encontram: instituições relevantes defendem a adoção de regras, há uma considerável atenção midiática ao tema e a sociedade está preocupada. O sinal vermelho pisca quando a regulação está consolidada em outros países, há uma intensa pressão pública e os principais atores daquele setor estão cobrando medidas.

É, a chapa esquentou para os fabricantes de alimentos ultraprocessados na América Latina. Como mostramos em O joio e o trigo, alguns países estão à frente de uma agenda política inédita que tenta colocar freio à epidemia de obesidade. Ninguém prega os olhos. O bagulho ficou louco.

As transnacionais sabem que essa é a hora de matar a criança no berço. A chilena, que colocou um sinal de advertência frontal no rótulo de produtos com excesso de calorias, sal, gordura e açúcar. E a mexicana, que criou um imposto sobre bebidas açucaradas. Já falamos sobre como no Congresso Internacional de Nutrição, realizado em outubro em Buenos Aires, a indústria tentou desmerecer as duas iniciativas, tidas como inúteis e confusas.

A seguir, algumas evidências de como a indústria está articulada para fazer abortar as iniciativas que ainda não vieram ao mundo. E quais as contradições nesse discurso.

1. Cerca o frango

“Gostei muito da apresentação do colega do Uruguai, mas a população brasileira é bem diferente”, enfatizou Mariângela Almeida, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), durante um seminário organizado em novembro pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para discutir a adoção de um modelo de rotulagem frontal de alimentos.

Talvez nossa alma sambista e boêmia não lide muito bem com os sinais de alerta defendidos pela sociedade civil, tão pesados.

Isolar para derrotar é uma primeira medida da indústria. No Brasil, por enquanto a Anvisa tem aceito a ideia de que as evidências científicas acumuladas em outros países não podem ser transpostas ao cenário local.

2. A República Unida da Obesidade

Isso nos leva ao segundo ponto. Desde a 2ª Guerra Mundial, essas empresas não pouparam esforços para derrubar fronteiras nacionais e criar produtos que pudessem ser vendidos do extremo mais pobre da África ao vilarejo mais rico da Europa.

Para essa função foi criado o Codex Alimentarius, um organismo conjunto da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da FAO que “harmoniza” a legislação dos países para que os produtos possam circular com facilidade. É ali que se define, por exemplo, quanto de cada aditivo será permitido em alimentos. Ou como serão as normas nacionais sobre fórmulas infantis. Desde que a Organização Mundial do Comércio (OMC) adotou o Codex como baliza para as transações na área alimentícia, as decisões têm efeito praticamente compulsório.

“O Codex trabalha no sentido de ajudar a indústria a produzir alimentos seguros e no sentido de que o consumidor tenha esses produtos seguros”, diz Felix Reyes, professor da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp que, durante muitos anos, integrou a comitiva brasileira de um dos grupos de trabalho. “Quando o Codex se reúne, todos os países estão representados. Um país pode querer proteger seus interesses políticos no Codex. Pode tentar induzir problemas a um concorrente.”

Ele diz, porém, que, na área científica, não há espaço para a proteção de interesses políticos.

Há muitas divergências. “Um estudo mostrou que mais de 400 dos participantes não governamentais nos comitês do Codex representam a indústria, enquanto apenas 1% representavam organizações de interesse público”, narra o livro Lethal but legal. “Companhias como Nestlé, Hershey, Kraft, General Foods, Coca-Cola e Pepsico, além de grupos como a Associação dos Fabricantes de Alimentos dos EUA e a Associação Nacional dos Processadores de Alimentos, frequentemente têm mais pessoas nessas reuniões que os governos de países pequenos. Em resumo, a indústria e suas entidades de classe são comumente os juízes, os jurados e os especialistas na formulação de decisões sobre acordos comerciais, deixando pouco espaço a considerações sobre saúde.”

Se quiser ler mais a respeito, recomendamos também o artigo Do food regulatory systems protect public health?, que mostra como a saúde foi colocada em segundo plano no Codex.





3.  Insaciáveis

Também não foram poucos os esforços da indústria por criar alimentos hiperpalatáveis que piram o cabeção de gregos e mexicanos, driblando os mecanismos de saciedade de nosso cérebro. Uma farta literatura sobre o assunto pode ser encontrada no livro Sal, açúcar, gordura, do jornalista Michael Moss.

“As próprias empresas de alimentos estão viciadas em sal, açúcar e gordura. A incansável determinação de gerar a maior atratividade pelo menor custo possível as leva, de modo inexorável, a esses três ingredientes”, ele explica.

Os níveis de obesidade na América Latina explodiram em simultâneo, desde a década de 1970 e com maior intensidade no final do século, quando os mercados ricos estavam mais próximos da saturação e o marketing das transnacionais se voltou aos países de média renda. Nesse momento, a região está em algum ponto da transição entre uma alimentação tradicional e uma totalmente industrializada.

Não custa lembrar que, para além dessa semelhança, há uma igualdade absoluta: cem gramas de açúcar são a mesma coisa no Brasil, no México ou na Austrália. E um pacotinho de M&Ms é vendido do mesmo modo na Argentina ou na Itália.

4. Que baixem as fronteiras

Se nada disso funcionar, esqueçam tudo o que falamos sobre as especificidades nacionais. É hora de derrubar as fronteiras e irmanar nossos povos. Sim, o Mercosul serve para essas horas de aperto. Frente à iminência da adoção dos sinais de alerta nos rótulos no Uruguai e ao cenário indefinido no Brasil, a indústria trabalha para levar a discussão para o âmbito do bloco regional.

A enorme quantidade de interesses conflitantes e a falta de acordo dentro dos próprios governos nacionais farão qualquer decisão subir no telhado. A Coca já sinalizou ao Uruguai que acionará a OMC pela interpretação de que a rotulagem frontal violaria os acordos regionais.

5. Amigo é coisa pra se guardar

Nessa hora vale acionar os amigos nos governos. As equipes econômicas e de agronegócio são sempre a porta de entrada na tentativa de frear qualquer iniciativa regulatória. Muitos países da região dependem fortemente desses segmentos e não estão dispostos a pelejas.

Um argumento central é a perda de arrecadação provocada por restrições ao setor privado, podendo levar ao fechamento de postos de trabalho. Outro reside na violação aos tratados internacionais de livre comércio.

No flanco oposto, pesquisadores e organizações da sociedade cobram que se coloque na ponta do lápis o custo provocado por esses produtos aos sistemas de saúde.

6. Deixa que eu chuto

“Vamos taxar quem não faz exercício? Vamos taxar quem come mais de duas mil calorias por dia? Vamos taxar o sujeito que tem estresse no trabalho?”, questionou Alexandre Kruel Jobim, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Refrigerantes e Bebidas não Alcoólicas (Abir), durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados para debater a criação de um imposto sobre esses produtos.

É uma fala interessante porque condensa alguns argumentos. Primeiro, de que a obesidade é causada por vários fatores – e, claro, os ultraprocessados estão longe de ser o fator central, de acordo com as empresas. Segundo, que o indivíduo é o grande culpado porque faz escolhas erradas. Terceiro, que nenhuma medida isolada resolve o caso.

De fato, tanto não resolve que, além da taxação, são propostos restrições à publicidade e à venda para crianças, sinais de advertência frontais nos rótulos e estímulos à venda de alimentos in natura, entre outras possibilidades. E, ainda que não fosse assim, por algum ponto é preciso começar.

7. Mal educados

Sim! É preciso começar – e terminar – pela educação alimentar. Em 100% das falas de representantes das empresas e de acadêmicos mais simpáticos a elas, essa é a panaceia. As pessoas estão gordas porque não sabem comer. Basta explicar a elas que Doritos se come à tarde e não na hora do jantar; que Coca é para ser tomada depois de uma caminhadinha pela rua e que esse corpinho flácido não deve ficar parado.

Mas, calma, quem foi mesmo que disse que era impossível comer um só? E quem nos ensinou que bastava um movimento simples para poder tomar um montão de refrigerante? E que Danoninho vale por um bifinho? E que o suquinho em pó está cheio de vitaminas e minerais, mesmo que as frutas tenham passado longe daquele pacotinho?

Há certas babás que você não quer para os seus filhos.

De todo modo, essas empresas não promoveram até agora nenhuma ação relevante de educação alimentar, mesmo com o farto investimento publicitário na televisão.



8. A diferença entre farinha de trigo e Fandangos

Não importa quanta evidência científica exista indicando determinado caminho, ela nunca é suficiente. Ou conclusiva. Para garantir o êxito desse argumento, o setor privado se esmera em financiar a produção de pesquisas científicas que caminhem no sentido contrário à regulação, confundindo a sociedade e os formuladores de políticas públicas. Já mostramos como a roda gira na Anvisa.

Pegando o caso da rotulagem, a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia) diz que o modelo de semáforos está ancorado em uma revisão da literatura feito pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação, da Unicamp, cujo coordenador é consultor de diversas empresas.

No mundo todo, dois tipos de organização têm sido acionados para defender as empresas.

– as sociedades acadêmicas nacionais de alimentação e nutrição, há longo tempo prestadoras de serviços

– as organizações de tecnologia de alimentos

Vamos falar sobre essas. Susana Socolovsky, presidente da Associação Argentina de Tecnólogos Alimentares, tem rodado o continente. México, Brasil e Uruguai foram três dos alvos. No geral, a fala consiste em acusar preconceito contra a indústria, mirando dois coelhos com uma cajadada.

Primeiro, a separação entre processados e ultraprocessados. Segundo, o modelo de perfil de nutrientes da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), que toma essa separação como base para definir os limites de ingestão por produto e não mais pela dieta total do dia: consumindo alimentos que não excedam os limites, é provável que você mantenha uma dieta saudável.

“O modelo de perfil de nutrientes proposto está baseado nas calorias do produto. Não permite mostrar as diferenças entre um produto tradicional e um produto baixo em açúcar”, disse Socolovsky a um jornal uruguaio. Em outra entrevista, ela afirmou que os veganos são uma tribo de fanáticos que encontraram uma maneira de substituir a religião. “Existe uma culpabilidade não justificada do alimento empacotado, como se fosse por si prejudicial.”

Não nos parece que a reação da média da sociedade seja aos alimentos industrializados. É fácil entender que um feijão continua sendo feijão, mesmo dentro do pacotinho.

Uma linha central da defesa das empresas consiste em dizer que o processamento é praticado há séculos. O trigo passa pelos moinhos desde tempos imemoriais. Algas e vegetais são fermentados para aumentar o tempo de conservação. Mas é simples entender que existe uma distância grande entre isso e um Fandangos.

Na Colômbia, quem atua é Jairo Romero, presidente da Associação Latino-Americana e do Caribe de Ciência e Tecnologia de Alimentos. Ele foi ao Senado afirmar que o modelo de rotulagem frontal com base em sinais de advertência não tem evidências científicas e entra em conflito com os sistemas adotados internacionalmente.

Romero é dono de uma consultoria que presta serviço às empresas de alimentos. E, em 2011, esteve envolvido em um escândalo acadêmico: foi co-signatário de uma carta que determinou o cancelamento de um debate sobre obesidade infantil e mídia no congresso mundial da área sob a alegação de que poderia causar “inconvenientes com os patrocinadores”.

9. Olé

Em pelo menos dois países, Brasil e Peru, as empresas jogam com o regulamento debaixo do braço, num drible digno dos grandes mestres. Não deu pelo Executivo, vai pelo Legislativo.

No final de novembro, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou o Projeto de Lei 489, de 2008, que ficou travado durante anos por ação da própria indústria. O PL postula a rotulagem por semáforos, que na década passada era visto como ruim pelo setor privado. Mas os anos passaram e o sistema se mostrou ineficiente. Então, é melhor fazer aprovar e sancionar uma lei que feche as portas à ação da Anvisa. No Chile, a história também começou com um semáforo e foi terminar num sinal de advertência.

Breve observação: a Comissão de Assuntos Econômicos é presidida por Tasso Jereissati (PSDB-CE), um dos maiores engarrafadores de Coca do mundo. Ele designou como relator Armando Monteiro Neto (PTB-PE), que já foi presidente da Confederação Nacional da Indústria.

No Peru, o Ministério da Saúde já havia aprovado em agosto uma resolução para adotar sinais de advertência inspirados no caso chileno, cumprindo as recomendações da Lei de Promoção da Alimentação Saudável, de 2013.

Mas o partido do ex-presidente Alberto Fujimori tirou da cartola um projeto para impor o semáforo. Como no Brasil, hierarquicamente uma lei estaria acima de uma decisão do Executivo. O texto foi aprovado rapidamente pela Comissão de Defesa do Consumidor do Congresso, que decidiu excluir do debate as evidências científicas.

10. É treta

Se nada disso funcionar, sempre teremos a violência. Duas extensas e bem documentadas reportagens do The New York Times relatam ameaças e espionagem contra agentes públicos, pesquisadores e integrantes de ONGs envolvidas no debate regulatório no México e na Colômbia.


Imagem em destaque: reprodução do quadro Una família, do colombiano Fernando Botero.


sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Quem sabe faz a hora, não espera receber



Por Frei Betto


                                                                                                                                                                              Greves ABC  1979 

        

O in­cons­ci­ente his­tó­rico bra­si­leiro é re­pleto de mitos. Como o bra­si­leiro “cor­dial”, su­jeito à in­ter­pre­tação equi­vo­cada do que as­si­nalou Sérgio Bu­arque de Hol­landa. Cor­dial sim, de cordis, co­ração, por agir mais mo­vido pelo co­ração do que pela razão. O que ex­plica o pa­ra­doxo de os de­fen­sores “da fa­mília” serem os mesmos que in­cen­tivam a ho­mo­fobia, a ex­clusão e os pre­con­ceitos. 
         
Alar­deia-se que somos um povo pa­cí­fico, no es­forço de fa­vo­recer o me­mo­ri­cídio que en­cobre as inú­meras re­voltas que marcam a his­tória do Brasil. Saiba a ver­dade his­tó­rica ao ler “Brasil: uma bi­o­grafia”, de Lilia M. Schwarcz e He­loísa M. Star­ling. 
         
O fra­casso da ten­ta­tiva de es­cra­vizar nossos in­dí­genas é atri­buído à be­ne­vo­lência dos por­tu­gueses. Padre Vi­eira as­sumiu-lhes a causa e não tran­sigiu em de­fesa deles. Pouco se con­si­dera a pró­pria re­sis­tência in­dí­gena, que se es­tende aos nossos dias.
         
A abo­lição ofi­cial da es­cra­va­tura, em 1888 (a úl­tima a ser de­cre­tada nas três Amé­ricas!), teria sido um pre­sente da ge­ne­rosa prin­cesa Isabel. Ora, basta um pouco mais de atenção à his­tória para cons­tatar como foi árdua a luta dos ne­gros es­cra­vi­zados, dos qui­lombos e das forças po­lí­ticas abo­li­ci­o­nistas que ou­saram se po­si­ci­onar contra o pe­lou­rinho.
         
A Re­pú­blica teria sido outra dá­diva dos mi­li­tares, assim como mais tarde Ge­túlio Vargas, pai dos po­bres e mãe dos ricos, teria nos dado a le­gis­lação tra­ba­lhista que al­for­riou o nosso ope­ra­riado do re­gime de se­mi­es­cra­vidão. Assim, si­len­ciam-se acir­radas lutas, desde a se­gunda me­tade do sé­culo 19, de anar­quistas, co­mu­nistas e sin­di­ca­listas.
         
A di­ta­dura mi­litar teria con­ce­dido aos idosos da zona rural a apo­sen­ta­doria com­pul­sória. E pouco se fala das dé­cadas de lutas pela re­forma agrária e do papel li­ber­tário das Ligas Cam­po­nesas.
         
Os go­vernos Lula te­riam im­plan­tado pro­gramas so­ciais, como o com­bate à fome, a de­mar­cação de terras in­dí­genas, os be­ne­fí­cios a idosos, es­tu­dantes, pes­soas por­ta­doras de de­fi­ci­ên­cias etc. 
      
Ora, o PT, fun­dado em 1980, re­sultou da con­fluência das Co­mu­ni­dades Ecle­siais de Base, do sin­di­ca­lismo com­ba­tivo e dos re­ma­nes­centes das es­querdas que en­fren­taram a di­ta­dura. Por­tanto, eleito pre­si­dente em 2002, Lula sim­bo­li­zava o re­sul­tado de pelo menos 40 anos de lutas po­pu­lares.
         
Na his­tória não há di­reitos re­ga­lados e sim con­quis­tados. O que pre­va­lece, en­tre­tanto, é a versão de quem está por cima. Versão que visa a en­co­brir a cru­el­dade da re­pressão, os crimes he­di­ondos das forças po­li­ciais e mi­li­tares, a chi­bata, o pau-de-arara, o choque elé­trico, as greves e mo­bi­li­za­ções, enfim, rios de sangue der­ra­mados para que, ao menos na letra da lei, fossem con­quis­tados di­reitos mí­nimos de ci­da­dania, agora ne­gados pelo go­verno gol­pista de Temer. A pro­pó­sito, quando serão abertos os ar­quivos da Guerra do Pa­ra­guai?
         
A versão do poder im­pregna o in­cons­ci­ente co­le­tivo e tende a imo­bi­lizar. So­bre­tudo quando o go­verno agarra o vi­o­lino com a mão es­querda e toca com a di­reita. As mo­bi­li­za­ções ar­re­fecem, em­bora a in­sa­tis­fação se am­plie. É o que ocorre hoje. Em nome do “podia ser pior”, se­tores pro­gres­sistas ficam a ver “a banda passar”. A banda podre da eco­nomia bra­si­leira as­fixia os po­bres com o ajuste fiscal, pre­serva os pri­vi­lé­gios da elite, e põe a culpa do zika vírus no mos­quito, sem ad­mitir que 50% da nação não dis­põem de sa­ne­a­mento bá­sico. 
         
Talvez uma par­cela con­si­de­rável da es­querda tenha de­sa­pa­re­cido, e eu ainda co­meta o erro de ter fé na sua exis­tência. Foi so­ter­rada sob os es­com­bros do Muro de Berlim, co­op­tada pelo ne­o­li­be­ra­lismo, ali­ciada por ali­anças pro­mís­cuas, des­mo­ra­li­zada pela cor­rupção. Quem sabe isso ex­plique por que há, nas redes di­gi­tais, tantos pro­testos, sem porém ne­nhuma pro­posta, ex­ceto a de Lam­pe­dusa, “mudar para que tudo fique como está”. 
         
O Brasil se pa­rece ao Ti­tanic. Em­bora à de­riva, muitos acre­ditam que ele apor­tará em solo firme em 2018. A or­questra do “vai me­lhorar” con­tinua a soar aos nossos ou­vidos, em­bora a água já nos atinja a cin­tura...
         
Duas li­ções aprendi em minha pas­sagem pelo Pla­nalto: o poder não muda nin­guém, faz com que a pessoa se re­vele. E go­verno é como feijão, só fun­ciona na pa­nela de pressão. Sem a mo­bi­li­zação dos mo­vi­mentos so­ciais, como no pas­sado fi­zeram os in­dí­genas, os es­cravos e os tra­ba­lha­dores, não ha­ve­remos de con­quistar di­reitos e am­pliar o es­paço de­mo­crá­tico. E isso exige algo raro hoje em dia: uma es­querda ca­pa­ci­tada na te­oria e en­ga­jada junto aos seg­mentos po­pu­lares na prá­tica.




Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Frei Betto
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

sábado, 9 de dezembro de 2017

PEC do Teto dos Gastos inviabilizou a educação pública no país, diz Dermeval Saviani


Em entrevista ao Brasil de Fato, o filósofo e pedagogo critica as medidas de Temer e aponta caminhos para a resistência

Por Mauro Ramos


                                                                                       Para Saviani/TV Contee

                                         
Dermeval Saviani, tem 73 anos. Ele é considerado o criador da chamada Pedagogia Histórico-Crítica, que visa, segundo expressa o próprio autor no livro A pedagogia no Brasil: história e teoria (2008, Autores Associados), que o ponto de referência da educação seja o compromisso de transformação da sociedade em vez de sua manutenção ou perpetuação. 

Autor de diversas obras sobre a questão educativa no Brasil, Saviani tem uma visão crítica sobre as políticas que vem sendo implementadas sob o governo golpista de Michel Temer (PMDB).

Em entrevista ao Brasil de Fato, Saviani afirmou, por exemplo, que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55, conhecida como PEC do Teto dos Gastos, que congela os investimentos públicos durante 20 anos, inviabilizou o Plano Nacional de Educação (PNE), criado em 2014 pelo governo da presidenta Dilma Rousseff. O PNE previa aumentar o valor dos investimentos na educação pública gradativamente em um período de dez anos. 

O pedagogo, que é professor emérito da Universidade de campinas (UNICAMP), também criticou a reforma do Ensino Médio decretada neste ano pelo governo Temer através da lei n.º 13.415, e cuja implementação pode ocorrer entre 2019 e 2020. Para Saviani, a reforma significa um retrocesso que nos levaria para a década de 1940, já que as atuais mudanças propostas são comparáveis às leis orgânicas criadas nessa época, que previam um ensino secundário diferenciado para “elites condutoras”, e outro para "o povo conduzido", conforme explica.

Durante a entrevista, Saviani ainda falou sobre a iniciativa chamada de “Escola Sem Partido”, a qual considera “uma proposta que procura se sintonizar com a visão fundamentalista das seitas religiosas”, e apontou caminhos para a construção de resistências às políticas de retrocessos que estão impactando na educação brasileira. 

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Em sua fala recente, você citou diversos retrocessos do governo golpista de Michel Temer. Um deles é a inviabilização do Plano Nacional de Educação de 2014. Por que ele ficou inviabilizado e quais as consequências?

Dermeval Saviani: Um dos pontos chaves que provocou o golpe foram os interesses econômicos do sistema financeiro, daí o foco na dívida e nas contas públicas, para fazer caixa, para fazer o superávit primário, para o pagamento dos bancos. Isto levou àquela emenda constitucional, a chamada PEC do Fim do Mundo, que congelou por 20 anos os gastos públicos, limitada apenas à inflação do ano anterior. 

Então, isto inviabiliza o Plano Nacional de Educação (PNE) porque as metas do plano estão vinculadas aos recursos financeiros. Uma das metas principais, a meta 20, que determinava atingir 7% do PIB [para o investimento na educação] nos primeiros cinco anos, chegando a 10% ao final do período de dez anos. Como o plano foi aprovado em 2014, então a meta de 10% do PIB, deveria ser atingida até 2024.

Com a aprovação da emenda constitucional por 20 anos, impedindo investimentos públicos, e iniciando-se a partir de 2017, isto conduz essa limitação até 2037. Como o plano vence em 2024, as metas ficaram inviabilizadas; algumas delas que deveriam ser atingidas no prazo de 2 anos, portanto em 2016, já venceram e não foram atingidas, e aquelas cujo vencimento se estende até 2024, também estão inviabilizadas por conta dessa PEC.

O senhor critica o fato da reforma do Ensino Médio ter sido feita sem diálogo com os atores principais da educação. Quais os problemas que apresenta esta reforma?

Essa é uma reforma que, na verdade, implica um retrocesso para a década de 1940, quando estava delimitada a formação profissional de um lado e a formação das elites de outro. Então, em 1942, o decreto que é conhecido como Lei Orgânica do Ensino Secundário, determinava que o ensino secundário se destinava às elites condutoras, e nesse mesmo ano de 1942, foi baixado um outro decreto, conhecido como Lei Orgânica do Ensino Industrial, regulando o ensino industrial, com o mesmo período de duração do ensino médio, quatro anos de primeiro ciclo, chamado ginásio, e três anos do segundo ciclo, o colegial, para formar os chamados técnicos de nível médio. Se o ensino secundário era destinado às elites condutoras, infere-se que o ensino profissional era destinado ao povo conduzido. Em 1942 foi a Lei Orgânica do Ensino Industrial, e em 1943 a do Ensino Comercial, depois em 1946 saiu a do Ensino Agrícola.

No caso dessa reforma atual, eles preveem cinco itinerários: os quatro primeiros correspondem àquelas áreas do antigo ensino secundário, e o último é o ensino profissional. Argumenta-se que esses itinerários são para flexibilizar o curso e permitir a escolha dos alunos. Mas isso é um outro absurdo porque estariam atribuindo a adolescentes de 15 anos, a responsabilidade de definirem o seu percurso, os seus projetos de vida.

Como é que um adolescente de 15 anos vai ter um projeto de vida para poder escolher já entre os cinco itinerários, àquele que corresponde ao que ele pretende desenvolver na sociedade? Nós sabemos que os jovens de 18, 20 anos que ingressam no ensino superior não têm clareza ainda da opção.

Então, na verdade, isto por um lado é uma justificativa falsa porque a tendência é que a maioria vá para esse itinerário profissional; inclusive, segundo a justificativa que normalmente se apresenta com esse itinerário ele teria imediatamente a chance de ter um emprego, enquanto que nos outros itinerários ele dependeria de ir para o ensino superior. De outro lado, não há garantia de que as escolas ofereçam os cinco itinerários. Então, a tendência vai ser oferecer dominantemente o quinto itinerário de formação profissional, e algum dos outros de forma mais restrita.

Por detrás disto está o entendimento de que a grande maioria vai para aquelas profissões de caráter não-intelectual, que implica maior precariedade e salários mais baixos. Então, a diferença entre as elites condutoras e a população trabalhadora de modo geral, proclamada lá na reforma de 1942, tende a se acentuar com uma proposta como essa. 

Você têm afirmado que a proposta da "Escola Sem Partido" é, na verdade, uma proposta de Escola de Partidos, ao ser uma iniciativa de partidos da direita. Quais são os riscos de propostas como esta?

Quando esse movimento de Escola Sem Partido procurou traduzir em projetos de lei, tanto no Congresso Nacional, como nas Assembleias e nas Câmaras Municipais, [percebeu-se que] trata-se de uma proposta visando a cercear a formação crítica dos alunos por parte dos professores. Uma proposta que visa a cercear a liberdade de pensamento, que é prevista como um direito na Constituição. Uma proposta que procura se sintonizar com a visão fundamentalista das seitas religiosas, pretendendo que os professores nas escolas, se limitem a uma formação isenta de criticidade e de capacidade analítica dos alunos. Então, se trata de uma proposta que visa, em última instância, a conformar a população à ordem estabelecida, e nesse sentido, é uma proposta conservadora e mais do que isso, reacionária. 

Por último, o senhor vem falando da necessidade de "resistências ativas" no âmbito educativo. O que já está sendo feito nesse sentido e quais elementos devem ser levados em conta no futuro próximo para fortalecer estas resistências?

O que eu venho propondo é a retomada dos Fóruns em Defesa da Educação Pública, tanto no âmbito local, como no regional, no nível dos estados, e no nível nacional. Esses fóruns são uma experiência que já aconteceu, como o Fórum em Defesa da Escola Pública na Constituinte, que as propostas dos educadores para figurar no capítulo da educação na Constituição foram apresentadas, e, de fato, conseguiu-se que praticamente a totalidade fosse incorporada à Constituição.

Depois, esse fórum se manteve na discussão da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], e isto possibilitou alguns avanços na tramitação na Câmara dos Deputados. Entre 1989, quando começou a tramitação, o projeto foi encaminhado como uma novidade porque, tradicionalmente, os projetos de lei de educação são de iniciativa do Executivo, mas nesse caso, em dezembro de 1988, deu entrada na Câmara Federal, o projeto de LDB oriundo do movimento dos educadores.

E aí tramitou de 1989 até 1994, quando foi aprovado na Câmara dos Deputados, com idas e vindas, havia o Centrão lá fazendo resistência, impedindo, por exemplo, que o título de Sistemas Nacionais de Educação fosse introduzido, então mudou-se para Organização da Educação Nacional, mas com alguns avanços importantes. Só que aí, passando para o Senado, veio a nova legislatura com o governo FHC [Fernando Henrique Cardoso], que assumiu em março de 1995, e todo esse trabalho foi posto de lado e apresentado um substitutivo, de iniciativa do senador Darcy Ribeiro, articulado com o MEC [Ministério da Educação e Cultura], sendo aprovado e resultando na atual LDB que, do ponto de vista dos educadores, apresenta vários limites. E aí a mobilização continuou com os Congressos Nacionais de Educação que elaboraram uma proposta de Plano Nacional de Educação, que também se antecipou do governo.

Então, esse é um movimento de resistência que avança em alguns momentos, em outros momentos acaba não conseguindo muitos avanços, mas que é necessário para evitar os retrocessos e retomar os avanços que os educadores vêm defendendo já há várias décadas como necessários para o desenvolvimento da educação pública e o atendimento das necessidades educacionais da população.

É importante não só retomar, mas ampliar, não ser fóruns organizados apenas para as entidades do campo educacional, mas incorporando também as entidades do campo sindical, dos sindicatos dos trabalhadores e dos movimentos sociais populares, para reforçar essa mobilização e, nesse sentido, fazer reverter as medidas retrógradas que o atual governo vem tomando. 

Edição: Simone Freire


FONTE:  Brasil de Fato

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Os limites da democracia brasileira



por Cândido Grzybowski

                                                                 
Com o golpe da cleptocracia e a tal “agenda de reformas”, o impasse entre direitos e mercado está sendo de algum modo resolvido, mudando a Constituição para bem pior. Ou seja, estamos num momento em que está sendo mandado às favas aquele pacto democrático capenga que, bem ou mal, nos dava alegrias cidadãs Cândido Grzybowski



O golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, legitimamente eleita em 2014, revelou as contradições e os limites da Constituição de 1988 e do processo de democratização no Brasil. O golpe é, de certo modo, o desfecho de uma democracia que vinha perdendo intensidade ou, de outro modo, que não havia conseguido superar suas contradições de origem. Ao mesmo tempo, o golpe, ao inaugurar um novo período político, aguçou as contradições anteriores e criou novas, que passaram a corroer o que ainda resta de democracia.

Estamos diante de uma questão de disputa de hegemonia política – de coalizão de forças capaz de gerar poder político e imprimir direção – na sociedade brasileira. Como ponto de partida de minha análise, é fundamental identificar e qualificar o que estava e ainda está em disputa de forma capaz de aglutinar a sociedade em blocos. Considero que se trata de disputa de hegemonia por ter tal capacidade aglutinadora no seio da sociedade, nos imaginários sociais, na mídia, nas organizações e movimentos, nos partidos. Claro, as disputas políticas na sociedade são muitas e diversas, não podendo ser reduzidas a uma disputa de hegemonia do poder político em dado momento histórico. Considero estratégicas as muitas lutas e debates emergentes, mas por questão de espaço de análise neste artigo limito-me à luta por hegemonia política no contexto democrático, sabendo que ela é apenas um elemento indispensável, mas longe de responder a tudo.

Em termos simples, qualifico a conquista da democracia nos anos 1980 como alternativa à ditadura na promoção do desenvolvimento capitalista no Brasil, e não como alternativa ao próprio capitalismo. Ou seja, gestou-se um poderoso movimento de cidadania que contribuiu decisivamente para o fim da ditadura e para instaurar uma regulação democrática do capitalismo e seu desenvolvimento entre nós. O mal maior a superar, naquele momento, era o capitalismo selvagem identificado com a própria ditadura militar e seu projeto de Brasil potência a pau e fogo. Com a democratização, a disputa de hegemonia se deslocou e passou a se configurar de outro modo: de um lado, o conjunto de sujeitos coletivos que busca a radicalização da democracia com mais e mais direitos de cidadania, com enfrentamento das exclusões sociais, injustiças, racismo, patriarcalismo e a enorme desigualdade social, com um Estado mais republicano e indutor de um desenvolvimento capitalista inclusivo, com geração de empregos e distribuição de renda; e, de outro, o conjunto dos sujeitos coletivos que pensam e desejam uma democracia mais formal e uma cidadania sobretudo eleitoral, com um Estado a serviço do desenvolvimento, mas não seu indutor, com menos interferência na economia e mais liberdade ao mercado, tudo visto como condições para o investimento capitalista e a acumulação privada, capaz de gerar empregos e, consequentemente, com o possível crescimento do bolo, aumentar o consumo e o bem-estar de todos.

Apesar de a questão da hegemonia estar apenas esboçada, identifico alguns momentos fortes de tal disputa desde o fim da ditadura militar no Brasil. No entanto, como não pretendo fazer a história da democratização, limito-me a chamar atenção para alguns elementos, sem pretensão de esgotar a análise. Partindo do momento que estamos vivendo, com o aguçamento das contradições nele presentes, vou “escavar” o que está por trás e o que já passou, para melhor avaliar o que precisamos fazer hoje para revitalizar e radicalizar a democracia, desta vez como alternativa ao capitalismo globalizado, forte em nosso seio, que nos está levando à barbárie.

Golpe da cleptocracia

Creio que não preciso aqui, em nosso Le Monde Diplomatique Brasil, explicar por que o governo Temer nasceu praticando um golpe na institucionalidade democrática, com a conivência do Judiciário. Basta dizer que o golpe contra o governo Dilma se situa no limite de uma ruptura perigosa no que defini anteriormente como a disputa hegemônica no processo de democratização. Do golpe à volta ao autoritarismo é um passo. Não é de ficar surpreendido com a legitimação de atores e vozes autoritárias neste momento que, aliás, apoiaram desde a primeira hora o golpe e a volta do autoritarismo militar, inclusive com bandeiras nas grandes mobilizações ocorridas em 2015 e começo de 2016.

Deixo de lado tal questão e vou direto ao que o golpe significa. Talvez a melhor definição para o governo Temer seja que estamos diante de uma cleptocracia escrachada – segundo o Houaiss, trata-se de regime político-social em que práticas corruptas são admitidas e consagradas. O presidente lidera a lista dos fortemente envolvidos em corrupção. Oito ministros acusados de corrupção o secundam. Sua base parlamentar é liderada e composta por um bando de corruptos. Os partidos da base do governo no Congresso Nacional têm em comum, como liga que os une, a prática da corrupção e a busca de medidas legais para se livrar de possíveis investigações e condenações. Não vale a pena seguir a lista de escândalos e da pequenez política dos cleptocratas, pois isso é de conhecimento público.

Como foi que corruptos de tal quilate armaram o golpe… e, o que é mais incrível, em nome do combate à corrupção dos governos petistas? Aí é que entra a disputa de hegemonia. A Lava Jato e a percepção criada na sociedade sobre ela foram muito importantes. Para o golpe, porém, fundamental foi o papel da grande mídia, negócio privado e monopolista. Aí começamos a identificar o primeiro déficit – melhor, talvez, contradição – da democratização ocorrida. Não enfrentamos o poder privado e a mercantilização da comunicação, que afeta de morte a informação, a imaginação e a cultura, bens comuns fundamentais para a radicalização da democracia. O outro déficit fundamental foi não ter criado uma blindagem da política, outro bem comum essencial na democracia, de sua mercantilização ou, de outro modo, dos negócios empresariais que, para prosperar, corrompem a política em busca de favores. Ampliamos a cidadania política de forma abrangente – acabamos, por exemplo, com a vergonhosa exclusão do direito de votar e ser representados dos analfabetos e estendemos o direito de votar à faixa dos 16 aos 18 anos –, mas não livramos a cidadania da manipulação de partidos e campanhas eleitorais pelos donos de capital.

O golpe do impeachment se fez à base de corrupção e traições, numa negociata envolvendo financiamentos e partilhas com partidos e deputados migrando da coalizão com a presidenta Dilma para uma outra, sob liderança do vice Temer, do PMDB. Aqui está o terceiro déficit fundador de nossa democracia: a conciliação como estratégia de conquista do poder político e da governabilidade, formando maiorias nada programáticas e ideologicamente articuladas. No Executivo e nos parlamentos forjam-se maiorias com compra de lealdades momentâneas e loteamento do Estado. A negociata foi a tal “agenda de reformas”, com garantia de limitar as investigações de corrupção. As reformas são, na verdade, um desmonte da Constituição de 1988 e de direitos conquistados e consagrados. Ela já avançou perigosamente e talvez já destruiu o essencial em termos de uma democracia que mereça tal nome. Tudo vem sendo feito em nome de um projeto de futuro que nos remete ao capitalismo selvagem. Não se trata somente de menos Estado, mas de um Estado forte para favorecer as forças brutas do mercado, contra direitos. Sei que a afirmação é forte, mas precisamos encarar as mudanças em curso como estratégias que podem levar a uma instauração do fascismo… por via democrática, como foi na Alemanha com Hitler e na Itália com Mussolini.

No momento em que escrevo este texto, o governo Temer resiste na corda bamba, por causa das graves denúncias contra o presidente e seus mais próximos apoios no Palácio e no Congresso. A grande mídia já está caindo fora, especialmente a Globo. A tal base no Congresso é muito gelatinosa e pouco confiável, sem consistência programática, como o próprio governo, só oportunismo político e preocupação em preservar os mandatos conquistados, nada representativos da sociedade, mas fiéis aos financiadores eleitorais. Ou seja, estamos diante de algo de fachada, de institucionalidade legal, mas sem legitimidade democrática ou poder real. São outros, nada ou pouco visíveis, que impuseram a “agenda de reformas”, utilizando-se do governo fantoche que temos. O pós-Temer poderá ser uma inversão de tendência ou algo pior ainda.

Limito-me a sinalizar estes pontos e vou para o outro momento ou nível de análise. Não é um bando de corruptos que tem projeto, ele é somente pago para executá-lo. Quem está por trás? Qual é sua capacidade em impor a tal a agenda ao país, base para nos levar a um gigantesco retrocesso e até ao fascismo, ou, como afirma Boaventura de Sousa Santos, a uma democracia fascista, se é que tal híbrido é possível inventar?

As forças e os interesses que sustentam a volta de um capitalismo selvagem e a inserção submissa na globalização

Volto ao que já escrevi há pouco. O golpe do impeachment não só revelou uma conjuntura de grande mudança na correlação de forças políticas no Brasil, mas também trouxe com ele um projeto de arquitetura do poder de Estado que restringe seu poder garantidor de direitos democráticos de cidadania para todas e todos, amplia seu poder repressivo em nome da “ordem e progresso”, renuncia ao seu poder de regular o desenvolvimento e abre espaço à expansão das forças brutas do mercado. Trata-se de um “Estado mínimo” do ponto de vista democrático e de um “Estado fortaleza”, beirando o fascismo, para garantir privilégios de classe da nossa velha oligarquia capitalista. O projeto visa a uma mudança mais duradoura para que a assimetria do poder em favor das classes abastadas não seja ameaçada novamente, por isso o esforço de fazer o mais rápido possível as tais reformas constitucionais ou, se Temer cair, zelar por um substituto que leve a tarefa a cabo.

O poder formal está, por enquanto, nas mãos da cleptocracia. No entanto, o poder real está sendo exercido pelo “senhor mercado”. Mas quem é esse tal senhor? De maneira simples, podemos defini-lo como aquele 1% de privilegiados porque donos de vultosos capitais, empresas e conglomerados, proprietários de terras e de bens, banqueiros e especuladores. O “senhor mercado” tem seus analistas e ideólogos, estrategistas e gestores fiéis, além da grande mídia para o trabalho de convencimento e criação do senso comum sobre o bem e o mal. É incrível que tal sujeito abstrato – “o mercado” –, um verdadeiro feitiço que se mede por valores monetários milionários e até bilionários, com consumo suntuoso em ilhas fortalezas em nossas cidades, tenha tanto poder de sedução e indução, sem outra motivação que não sua própria acumulação. Para crescer e acumular, todos os meios são possíveis, legítimos e ilegítimos. Em sua visão, o poder estatal e as leis devem estar a seu serviço, caso contrário tudo se faz para mudá-los ou, então, contorná-los pela fraude, corrupção e paraísos fiscais.

A “agenda de reformas” formulada pelo gerentão de banco, ministro Meirelles, tem em seu DNA o sentido único e certeiro de adequar o país, especialmente o principal instrumento de fazer política do Estado, que é o orçamento, para limitar gastos com direitos sociais (em seu sentido amplo), vistos como desperdício, para assim priorizar o mercado e a acumulação – na verdade, favorecer os lucros de banqueiros e especuladores sanguessugas da dívida pública, alimentada por uma política de juros beirando a agiotagem oficial.

Um elemento adicional do projeto de Estado dos donos reais do poder é a volta de uma inserção submissa no capital globalizado. Nada de veleidades como Mercosul, Unasul, Brics, relações Sul-Sul. Querem mostrar que são amigos fiéis e subservientes da potência maior, os Estados Unidos. Será que o nacionalismo conservador de Trump quer isso? Na realidade, a globalização capitalista parece caminhar no sentido de desenhar uma espécie de geopolítica regional. Logo agora que os donos do poder por trás do golpe renunciam a ser potência regional? Por quê? Nossa sorte é que eles também têm um calcanhar de aquiles com seu capitalismo selvagem, extremamente dependente de extrativismo mineral e do agronegócio.

A favor dos donos reais do poder no Brasil é a conjuntura mundial de perda de vitalidade da democracia por toda parte e a volta de uma agenda reacionária e conservadora. Ou seja, eles não são uma exceção; embarcam numa onda maior de encurralamento das democracias reais e de redução de direitos. A onda do conservadorismo está associada ao aumento de visões nacionalistas estreitas e controle de migrações, de mais intolerância, de fundamentalismos e de racismo pelo mundo. Enfim, nosso golpe tupiniquim se dá numa conjuntura em que muitos golpes contra a democracia estão acontecendo pelo mundo. Será que a globalização capitalista, hoje radicalmente financeirizada, portanto não produtiva, saberá se reinventar sem levar o planeta Terra a uma desastrosa crise que escapa ao controle e dá lugar à mais pura barbárie? O incrível é que isso já está ocorrendo de forma radical no Brasil.

Rupturas do pacto democrático ou limites da própria democracia conquistada nos anos 1980?

Saímos da ditadura por meio de muitas trincheiras abertas pelo novo sindicalismo e pela CUT, pelos novos movimentos sociais, pelas comunidades de base, pela OAB liderada por Faoro e pela frente democrática, entre outros, que desembocaram no movimento da Anistia e, depois, no Diretas Já. O pacto democrático se esboçou naquele acórdão da Aliança Democrática, liderado por Tancredo e Sarney para ganhar a eleição indireta de presidente no Congresso Nacional, ainda no contexto da ditadura militar. Foi como juntar o lado menos radical dos democratas com o lado menos radical dos autoritários. Deu na Nova República, quase natimorta, pois o representante mais democrata, Tancredo, não tomou posse e veio a falecer. Seu vice, Sarney, saído do seio da ditadura e tornado democrata de ocasião, virou nosso presidente. Vicissitudes da vida, mas bota azar nisso! O fato é que essa se tornou a pedra fundamental do edifício democrático que acabamos construindo. Pedras fundamentais são apenas pedras, sinais de algo por fazer, que muitas vezes nunca acontece. Mas, no caso da Nova República…

A convocação de uma Constituinte fazia parte do tal acórdão. Ela foi feita, mas não na forma demandada pela cidadania de uma Assembleia Constituinte exclusiva, e sim de uma Assembleia formada pelos deputados e senadores eleitos em 1986, somados aos senadores eleitos em 1982, ainda em plena ditadura. Como a Nova República nasceu como transição e não como ruptura, a Constituinte acabou tendo uma hegemonia do pensamento conservador, já que as mesmas regras de eleição da ditadura determinaram a conformação do Congresso virado Constituinte. Isso deu origem ao “Centrão”, em que tudo cabia, mas a liga era a linha extremamente conservadora e a favor do “mercado”, muito semelhante à tal base do Temer no Congresso hoje.

A contradição de origem acabou moldando uma Constituição híbrida, extremamente contraditória em seu âmago. Graças à pressão popular, de uma sociedade organizada e participante, a Constituição aprovada em 1988 incorporou o essencial das emendas populares em termos de direitos sociais e do valor da dignidade humana – especialmente seguridade social, saúde e educação – mais Código do Consumidor, erradicação da pobreza e meio ambiente. Porém, deixou de fora tudo o que diz respeito à economia e ao desenvolvimento, tributação mais justa, reforma agrária e imobiliária urbana. Um aspecto fundamental, hoje pouco lembrado, é que a Constituição de 1988 não reformou a política elegendo-a como bem comum democrático essencial. Destaco aqui a falta de uma blindagem da política aos interesses patrimonialistas e à mercantilização, deixando-a mais dependente de negócios do que de cidadania, em sua diversidade. Já sinalizei anteriormente os grandes déficits de nossa Constituição, pacto democrático importante naquele momento histórico, mas não renovado e radicalizado nos trinta anos que nos separam dele.

O espaço aqui não me permite aprofundar a questão. O fato é que deixar a economia de fora de uma leitura e regulação democrática sobre ela deixou nossa Constituição de 1988 com uma contradição monumental para o futuro democrático do Brasil: direitos sociais de cidadania de feição mais para a radicalização da democracia e falta de regulação radical da economia como condição para o Estado democrático garantir tais direitos sociais. Os momentos de democratização que se seguiram à Constituição de 1988 se configuraram como formas em que tal contradição foi vivida. Nos termos em que aqui estou analisando, isso conformou a disputa de hegemonia dos últimos trinta anos no Brasil. Em meu modo de ver, gestamos uma democracia limitada nela mesma, sem condições constitucionais para rupturas de fundo com um capitalismo patrimonialista, destruidor e excludente, machista e racista, gerador de muita desigualdade.

Seria necessário analisar os momentos, diversos e muito contraditórios, que fizeram a história real e ligam a Constituinte de 1988 ao que acontece hoje. Tivemos o ajuste estrutural e seu impacto interno, antidemocrático em sua essência, passando por Sarney e seus planos econômicos, o aventureiro Collor, o interino Itamar, o Plano Real e a doma da inflação com FHC – aquele que pediu que se esquecesse seu passado de pensador da teoria da dependência –, que apostou no neoliberalismo e, a bem da verdade, na submissão à nascente globalização. Tivemos os treze anos de Lula-Dilma, com suas políticas distributivas e avanços em direitos sociais, mas sem enfrentar e transformar os tais fundamentos da economia. Foram anos importantes em termos de distribuição de renda – sem tocar na riqueza e acumulação – e inserção no consumo de amplas camadas excluídas e pobres, sem mudanças estruturais para dar sustentabilidade e mais democracia. Estimulou-se a participação democrática, sem transformar a cidadania ativa em força de mudança da própria política como desenhada pela Constituição de 1988. Com um “reformismo fraco” (André Singer), avançamos sem mudar o essencial. O resultado está aí: numa penada as conquistas estão indo para o ralo.

Estou somente esboçando os pontos e sei que tal análise é insuficiente, mas precisamos fazê-la para que nas trincheiras de resistência de hoje possamos reinventar a democracia em novas bases. O fato é que ninguém, nos vários momentos políticos que vivemos, enfrentou a contradição original do pacto democrático conciliador e propício a ser corrompido. Os governos petistas renunciaram a ser isso, mesmo que a cidadania esperasse tal vontade política de Lula, em particular na questão da disputa de hegemonia. Os outros nem mesmo se propuseram a enfrentar o dilema de base da Constituição. Agora, porém, com o golpe da cleptocracia e a tal “agenda de reformas”, o impasse está sendo de algum modo resolvido, mudando a Constituição para bem pior. Ou seja, estamos num momento em que está sendo mandado às favas aquele pacto democrático capenga que, bem ou mal, nos dava alegrias cidadãs.

No entanto, as possibilidades sempre continuam abertas

É assim que vejo os limites da democracia entre nós. Mas a história não acabou. Analiticamente, parece difícil sairmos da atual encrenca e voltar a sonhar com democracia. No entanto, o pessimismo da racionalidade não deve subjugar o otimismo da vontade, como nos ensinou Gramsci. Devemos apostar no que nossa cidadania sonha e deseja, uma sociedade democrática, justa, vibrante, boa para todo mundo, dançante de alegria, como é próprio de nossa cultura comum. A possibilidade não virá por si só, pois ela nunca é uma espécie de inevitável histórico. Ela se forja no devir, ela se faz na história, na resistência e na ousadia da ação, enfrentando as relações contraditórias para nós e, não esqueçamos, para os que combatemos. Acreditar na experiência e na força que adquirimos no processo de democratização, em nossas ideias e, sobretudo, em nossa capacidade. O que mais ganhamos em trinta anos de Constituição foi aperfeiçoar nosso ativismo cidadão. Claro, no momento estamos perdendo com o descrédito na política, que se alastra perigosamente. Afinal, somos uma potencial maioria. Temos de extrair o bom senso do senso comum que está aí a nos emparedar, como nos ensinou Gramsci. Outro Brasil e outro mundo sempre são possíveis. Saídas existem, precisamos achá-las e construir o caminho.


Cândido Grzybowski é sociólogo e assessor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).



domingo, 19 de novembro de 2017

E Finlândia renova sua Educação…



Conhecido pela excelência no ensino, que é público e gratuito, país quer agora
renovar currículos e métodos. Receita essencial: ainda mais participação


Por Claudia Wallin, na BBC Brasil


Novos tempos exigirão uma nova escola. O diagnóstico vem da Finlândia, país cujo sistema, já celebrado internacionalmente, agora planeja reformas de olho em como será sua educação daqui a duas décadas.

A meta é envolver os pais em um amplo debate sobre a agenda que os finlandeses acreditam ser necessária para preservar o nível de excelência do ensino público nos próximos anos.

E para isso, nesta quarta-feira a Finlândia vai realizar simultaneamente, nas escolas públicas de todo o país, o que está sendo anunciado como a maior reunião de pais e professores do mundo.

“O mundo está mudando, as escolas precisam mudar, e o diálogo com os pais é crucial nesse processo, uma vez que eles podem desempenhar um papel significativo na evolução da escola”, diz à BBC Brasil Saku Tuominen, um dos organizadores do evento e diretor do projeto HundrEd, criado no país para identificar e compartilhar inovações educacionais em todo o mundo.

Os finlandeses já se perguntam: que tipo de conhecimentos, habilidades e aptidões serão importantes para um aluno em 2030?

‘Diálogo permanente’

“Inovação é a chave”, afirma Tuominen. “Em um mundo em transformação, pensamos que em 2030, por exemplo, os alunos precisarão estar capacitados tanto em termos de novas tecnologias e da ênfase na criatividade como também no desenvolvimento de habilidades emocionais, autoconhecimento e pensamento crítico.”

A megarreunião de pais é resultado de uma colaboração entre o Ministério da Educação e Cultura, o Sindicato dos Professores, a Associação de Pais de Alunos da Finlândia e o projeto HundrEd.

Mais de 30 mil pais já se inscreveram para participar do evento – e a ideia é transformar a iniciativa em um evento anual.

“Queremos um diálogo de alto nível e permanente sobre os fundamentos da educação do futuro. E mais do que nunca precisaremos de soluções criativas em consonância com a base do pensamento finlandês, que é uma educação em que o aluno tenha prazer em aprender”, destaca Saku Tuominen.

Alunos viram professores

Para alavancar o debate, a reunião de pais e mestres será aberta em todas as escolas, que exibirão vídeos curtos com a fala de especialistas e educadores sobre o rumo das reformas em nível nacional, além de filmes sobre inovações que vêm sendo experimentadas em escala local.

Uma dessas inovações é um projeto-piloto que inverte os papéis entre mestres e aprendizes: alunos estão dando aulas a professores sobre o uso mais eficiente de tablets, mídias sociais e câmeras digitais.

“Os resultados têm sido excelentes”, diz Saku Tuominen. “É uma forma eficaz e econômica de capacitar melhor os professores de cadeiras não ligadas à tecnologia, e que também cria laços mais estreitos entre professor e aluno.”

Na visão finlandesa, professores não deverão ser apenas provedores de informação, e os alunos não serão mais somente ouvintes passivos.

“Queremos que as escolas se tornem comunidades onde todos possam aprender uns com os outros, incluindo os adultos aprendendo com as crianças”, diz Anneli Rautiainen, chefe da Unidade de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação finlandês.

“Habilidades tecnológicas e codificação serão ensinadas juntamente com outros assuntos. Para apoiar os professores, também haverá tutores digitais.”

Solução de problemas

Outra inovação a ser apresentada na reunião de pais é um projeto que vem sendo conduzido nas escolas da cidade de Lappeeenranta, no sudeste da Finlândia, para treinar os alunos em técnicas de solução de problemas. O projeto reúne uma equipe de psicólogos, especialistas e educadores.

“A ideia é capacitar os estudantes a desmistificar os problemas, e aprender a focar nas soluções”, explica Tuominen.

No raciocínio dos finlandeses, é preciso mudar a percepção sobre o que deve ser ensinado às crianças e o que elas necessitam para sobreviver numa sociedade e em um mercado de trabalho em rápida transformação.

“As escolas precisam se adaptar aos novos tempos e reconhecer que, com a revolução tecnológica e o impacto da globalização, as necessidades das crianças mudaram. É preciso incluir no currículo escolar temas como a empatia e o bem-estar do indivíduo, além de renovar os ambientes de ensino para motivar os alunos”, observa Kristiina Kumpulainen, professora de Pedagogia na Universidade da Finlândia.

O novo currículo escolar adotado em 2016 já inclui um alentado programa de tecnologia de informação, assim como aulas sobre vida no trabalho. Parte dos livros escolares, assim como a maioria do material de ensino, é completamente digital.

Diálogo

A Finlândia, país de 5,4 milhões de habitantes, é conhecida internacionalmente por pensar fora da caixa no que diz respeito à educação, o que atrai a curiosidade de especialistas do mundo inteiro.

Os dias são mais curtos nas escolas finlandesas: são menos horas de aula do que em todas as demais nações industrializadas, segundo estatísticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, que reúne países desenvolvidos). Em uma típica escola finlandesa, os alunos têm em média cerca de cinco aulas por dia.

Os estudantes finlandeses gastam ainda menos tempo fazendo trabalho de casa do que os colegas de todos os outros países: cerca de meia hora por dia. O sistema também não acredita na eficácia de uma alta frequência de provas e testes, que por isso são aplicados com pouca regularidade.

E para os desafios dos novos tempos, os pais querem voz ativa.

Para a presidente da Associação de Pais da Finlândia, Ulla Siimes, não há mais espaço para as tradicionais reuniões entre educadores autoritários e pais queixosos.

“Quando perguntamos aos pais o que eles esperam das reuniões com professores, a resposta é que eles querem se sentir incluídos nas questões escolares, e não apenas receber relatórios sobre o que está sendo feito”, disse Siimes em entrevista à TV pública finlandesa YLE, ao destacar a importância da reunião de pais e mestres da próxima quarta-feira.

“As experiências pessoais vivenciadas pelos pais décadas atrás podem influenciar as suas concepções sobre como as crianças devem ser educadas nas escolas, e precisamos atualizar nosso modo de pensar para adaptar as técnicas de ensino à realidade da nova era”, acrescentou ela.

A reunião também pretende informar os pais sobre os efeitos de mudanças que já vêm sendo implementadas nas escolas do país, como a criação de salas de aula mais versáteis e flexíveis.

Paredes vêm sendo derrubadas para a criação de espaços de ensino em plano aberto, com divisórias transparentes. Em vez das carteiras escolares, o mobiliário inclui sofás, pufes e bolas de pilates.

“No futuro, não haverá necessidade de salas de aula fechadas, e a aprendizagem acontecerá em todos os lugares”, diz Anneli Rautiainen.

Outra aposta consolidada no novo currículo escolar é o ensino baseado em fenômenos e projetos, que atualiza a tradicional divisão de matérias e dá mais espaço para que determinados temas – por exemplo a Segunda Guerra Mundial – sejam trabalhados conjuntamente por professores de diferentes disciplinas.

Ainda que não lidere o ranking internacional de desempenho de alunos medido pelo exame Pisa, da OCDE, a Finlândia costuma estar entre os mais bem colocados do mundo. Mas isso não é o que guia as reformas educacionais, dizem educadores.

“A importância de rankings como o Pisa no pensamento finlandês é bastante insignificante. Eles são vistos como uma espécie de medição de pressão sanguínea, que nos permitem considerar, ocasionalmente, a direção para onde estamos indo, mas os resultados dos testes não são nosso foco principal”, diz o educador finlandês Pasi Sahlberg. “O fator essencial é a informação que as crianças e os jovens vão precisar no futuro.”

“Na Finlândia, o objetivo da educação não é obter sucesso no Pisa”, reforça Saku Tuominen, um dor organizadores da reunião de pais. “Nossa meta é ajudar as crianças e adolescentes a florescer e ter uma vida mais satisfatória.”


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...