terça-feira, 30 de junho de 2020

Professores lançam carta em defesa da Universidade Pública





Reproduzimos a seguir carta aberta elaborada por professores universitários, em defesa da Universidade Pública, que tem tido apoio de estudantes, democratas, ativistas e entidades democráticas. A principal luta desses professores é contra o Ensino a Distância (EaD), que sinaliza a privatização pouco a pouco das universidades públicas, aos moldes do "Future-se". A carta também foi transformada em abaixo-assinado que pode ser acessado pelo link: 

http://chng.it/hRjDpBOkvg  [Em 29.06.2020]




Carta em defesa da Universidade pública, gratuita e de qualidade para todos e todas, mesmo em tempo de pandemia.


Caros professores e professoras, estudantes, técnicos administrativos e educacionais, pais, mães, interessados em geral.

Frente à necessidade emergencial de enfrentar o problema que a pandemia traz à educação pública, notamos que o encaminhamento dado de forma quase que hegemônica pelas instituições, quer da educação básica, quer no ensino superior, repousa em propostas de ensino remoto por meio da internet. Esta solução tem sido apresentada, via de regra, como a única possível e a mais correta.

No entanto, estamos todos cientes de que, o que se afigura, não pode ser legitimamente chamado de “retomada dos processos escolares”, porque se trata, sobretudo, de algo radicalmente diverso do que, como docentes, fazíamos presencialmente.

Além do problema mais evidente, imediato e sem solução das dificuldades de todos os estudantes acompanharem as atividades em meio aos riscos de adoecimento e morte, do aumento exponencial da contaminação registrados em números alarmantes no país, estão sendo sistematicamente ignoradas questões decisivas como a natureza do trabalho dos professores e do que está em jogo no processo de ensino e aprendizagem.

Deflagrada a condição de excepcionalidade que gradativamente foi se tornando cotidiana, a máquina administrativa passou a emitir pareceres, resoluções e regulações oficiais em que se supõe perdurar uma certa “normalidade”, na qual estaríamos suficientemente saudáveis, esclarecidos, convencidos, equipados e preparados para retomar as atividades letivas de forma remota com força total para o cumprimento das cargas horárias, haja o que houver. E não é bem assim, sabemos.

Os debates das grandes corporações especializadas em plataformas e tecnologias de ensino reforçam a ideia de que a adaptação ao novo ambiente tecnológico tornará o ensino mais eficaz e veloz e que a sala de aula presencial perderá sua importância histórica, uma vez que a educação, reduzida à aprendizagem, depende apenas de engajamento. De outra parte, educadores e estudantes estão entre paralisados e surpreendidos com a resposta única, a saber, o ensino remoto que tal cenário impôs e que parece revelar nossa dificuldade em articularmos coletivamente uma resposta à altura.

Ainda que haja discussão nas instâncias decisórias, ela está centralmente direcionada ao debate sobre o cumprimento do ano letivo, desconsiderando o fato de que a pandemia tem agravado a condição socioeconômica e de saúde mental de grande parte das nossas comunidades. Outras possibilidades poderiam/deveriam ser consideradas, propiciando um debate para além das perspectivas em que se avalia individualmente a condição ou não de ter atividades não presenciais, em uma reflexão coletiva pautada no questionamento de medidas que excluem aqueles que não têm, por motivos diversos, condições para seguir o calendário letivo, neste momento de crise sanitária.

Qualquer exame, mesmo que superficial, sobre o histórico das políticas públicas revela o avanço persistente de projetos tecnocráticos de negligência, de desmonte e de privatização dos bens públicos, que se acelera em meio a pandemia causada pelo coronavírus. As determinações de retomada do calendário letivo ocultam razões muito pouco educativas evidenciadas nas alegações e justificativas oficiais e institucionais. Haja vista que não há nenhum fundamento educacional para a adoção das atividades remotas como substitutas das presenciais, trata-se mais de cumprir calendários predeterminados, mesmo que isso signifique grandes perdas do ponto de vista formativo, com o que quase todos concordam.

A materialidade tecnológica interfere e condiciona os aproveitamentos, na medida em que modifica a relação com o tempo, com o espaço instaurando outra ordem na percepção dos ambientes e das circunstâncias. A adoção de meios educacionais está diretamente ligada aos objetivos e processos educativos e, assim, atividades corriqueiras como assistir a uma aula, apresentar um seminário, pesquisar, escrever e ler livros e artigos ficam submetidos ao mesmo plano de experimentação, como se se tratasse apenas de variações de formas de apreensão de conteúdos acadêmicos.

Sabemos que a experiência presencial que a aula comporta é insubstituível e ocupa um lugar fundamental no processo de formação; implica na apreensão em ato de uma reflexão que se constitui conjuntamente e cuja depuração e incorporação reorganizam o pensamento nascente do estudante. A natureza hesitante baseada na experimentação da reflexão proposta pelo professor no momento da aula revela os traços propriamente humanos da composição das ideias, ao contrário do texto acabado, seja para ser lido ou apresentado em forma de conferência que transmite uma ideia artificial do processo no qual o estudante está sendo iniciado. A aula instaura um ritmo e uma temporalidade próprios que convidam o estudante a participar de uma nova condição, distinta essencialmente das conversas, dos noticiários e das formas usuais de contato com os meios de comunicação. O modo de encadeamento e elaboração argumentativa solicitam um reordenamento da atenção, pedem engajamento de um modo que nenhum meio técnico poderia fazê-lo. Por isso, perdemos todos ao considerar que essa experiência tenha equivalente à altura em qualquer outro tipo de atividade.

O tempo da educação, do ensino e do aprendizado é, radicalmente, contrário a qualquer tempo de emergência, de exceção. Escolas e universidades não sabem lidar com emergências sociais, sabem, quando muito, apropriar-se e transformar os dramas sociais em temas de estudo e de elaboração intelectual. Quando a orientação e concepção de políticas públicas esteve baseada em estudos acadêmicos? Isso não significa que esses estudos não tenham valor e alcance. Ao contrário, significa que são sistematicamente desprezados pelas autoridades. Por isso, pretender justificar que a volta às atividades letivas sejam fator de combate aos “danos estruturais e sociais para estudantes e famílias de baixa renda, como estresse familiar e aumento da violência doméstica” conforme consta no parecer do CNE 5/2020 representa desvio das funções sociais da educação e das instâncias que, verdadeiramente, deveriam ser responsabilizadas.

Concordamos que não podemos nos afastar dos estudantes, que precisamos acompanhá-los, orientá-los, voltar a engajá-los nos processos formativos, e justamente pela responsabilidade que isso convoca precisamos ser cuidadosos nas decisões, inclusivos na formulação de propostas, democráticos nas discussões e flexíveis nos desenvolvimentos. Mas o modo como tem sido encaminhada a discussão faz parecer que só há duas escolhas: a adesão à educação por internet como correspondente às atividades acadêmicas regulares ou a simples recusa. Contudo, estão ausentes outras perguntas, para além da simples divisão entre os pró e contra ensino a distância: Como garantir o direito à educação sem exclusão? Qual passa a ser a função social da escola, da universidade e dos professores durante e após a pandemia?
Se continuamos a reivindicar que trabalhamos por uma educação no sentido de garantir formação de qualidade para a cidadania, para a participação ativa na sociedade, para o desenvolvimento humano, para o exercício profissional com dignidade, para a defesa inegociável e democrática dos direitos humanos, para combater as desigualdades e as discriminações, não podemos ceder – muito menos sem crítica e oposição – aos imperativos imediatistas de medidas que nos parecem, sob muitos aspectos, criadas apenas para atingir critérios de desempenho e que impelem a um automatismo que nos distancia daquilo que propicia de fato uma oportunidade fecunda para a educação.

A suspensão do calendário acadêmico poderia ser a oportunidade para refundarmos a relação entre ensino, pesquisa e extensão na universidade e inaugurarmos um espaço de ampla escuta, acolhimento e ação coletivos no sentido de aprofundarmos nosso conhecimento, análise e imaginação para um mundo pós pandemia. Ou será que tudo funcionava de forma excelente, antes da pandemia, restando-nos apenas garantir que tudo continue, em ritmo e frequência?

Com as energias utópicas leigas tão em baixa, a esperança residual sobrevive somente pela determinação intelectual de manter-se na luta, um pouco por princípio, outro por responsabilidade, um tanto por honra, outro por costume, estudando, debatendo, intervindo, ainda que a derrota seja diariamente reeditada. Crer no processo que a luta instaura, manter-se engajado no que desencadeia, orientar-se pelos êxitos que a história registra, precaver-se contra as armadilhas do sistema, examinar criticamente as conformações que chamam presente, aprender a pensar duas vezes antes de ceder aos voluntarismos emergenciais, manter-se fiel aos princípios nos quais as pessoas são sempre mais importantes do que as coisas e os procedimentos.

De algum modo, as utopias, mesmo aquelas que justificaram nossas escolhas profissionais pela educação, poderiam renascer, ainda que discretamente, desses apelos, e é o que parece nos restar como esperança residual no momento. Assim, estaríamos trabalhando na defesa e fortalecimento dos que mais precisam, de introduzir a juventude na tradição e, assim, de zelar pelo futuro. É o que defendemos, no que acreditamos e do que estamos convencidos. 

Adriana Santiago Silva - Diretora Escolar SBC/SP – mestranda UnifespAlexandre Filordi de Carvalho –Unifesp
Alessandra Alexandre Freixo - UEFS
Ana Luiza Jesus da Costa –FEUSP
Anderson Ferreira de Brito  SME Guarulhos/ docente SMESP / Mestrando Unifesp
André Almeida Uzêda – UEFS
Andrea de Faria Souza - SME - SP / mestranda Unifesp
Antonia Almeida Silva – UEFS
Ariana Rocha Caldeira - mestrado UEFS
Branca Maria de Meneses – UFMS
Carlos Roberto Medeiros Cardoso –EMEF Dep. Caio Sergio Pompeu de Toledo
Carmen Sylvia Vidigal Moraes –FEUSP
Carolina Cunha da Silva – docente da Prefeitura Municipal de São Paulo
Centro Acadêmico de Pedagogia Cecília Meireles - Unifesp
Cesar Augusto Minto – FEUSP
Clarissa Silva de Castilho – Unip
Claudiano da Hora de Cristo - docente da Rede Estadual da Bahia
Cláudio Marques da Silva Neto – diretor da EMEF Infante Dom Henrique, SME-SP
Cleide Mércia Soares da Silva Pereira – UEFS
Clóvis Frederico Ramaiana Moraes Oliveira – UEFS
Dalva Valente Guimarães Gutierres – UFPA
Danielle do Nascimento Rezera – doutoranda Unifesp
Débora Cristina Goulart –Unifesp
Deise Lopes de Souza - Professora SME- SP/ doutoranda Unifesp
Denilson Soares Cordeiro –Unifesp
Denise Helena Pereira Laranjeira - UEFS
Edna Laize Matos da Silva- discente UEFS
Edson do Espírito Santo Filho - Professor UEFS / Rede Mun. Ens. Feira de Santana
Eduardo Oliveira Miranda -  UEFS
Elizabete Pereira Barbosa -  UEFS
Elisete Teixeira de Araújo / Professora SEDUC-SP e SME-SP
Emmanuel Oguri Freitas-  UEFS
Estela Pereira – IFSP
Eurelino Teixeira Coelho Neto -  UEFS
Evodio Maurício Oliveira Ramos – UEFS
Executiva Nacional dos Estudantes de Pedagogia - ExNEPe
Fábio Dantas de Souza Silva -  UEFS
Faní Quitéria Nascimento Rehem - docente UEFS
Fabio Oliveira de Castro - Professor SEDUC-SP/ mestrando Unifesp
Fabrício Oliveira da Silva - docente UEFS
Francico Miraglia – IME-USP
Gilberto Tedeia –UnB
Gláucia Maria Costa Trinchão -  UEFS
Gregório Luís de Jesus – docente da rede municipal de Tucano- Ba
Helder Garmes – FFLCH/USP
Horacio Martin Ferber – UBA –Argentina
Ingrid Aparecida Peixoto de Borba – discente Unifesp
Ivan Luis dos Santos – IFSP/Itaquaquecetuba
Jacqueline Nunes Araújo -  UEFS
Jadilson Lourenço da Silva - Supervisor SEDUC-SP/doutorando Unifesp
Joaci Pereira Furtado –UFF
José Alves – Unifesp
José Conceição Silva Araújo – IF Bahia
José Marcelino de Rezende Pinto – USP Ribeirão Preto
Juracy Santana Rodrigues- UNEB
Kelma de Freitas – IFSP/Itaquaquecetuba
Leomárcia Caffé Uzêda - docente UEFS
Ludmila Oliveira Holanda Cavalcante - docente UEFS
Luís Antonio Cajazeira Ramos – poeta
Luciene Maria da Silva- UNEB
Lucilia Borsari - IME-USP
Lucimêre Rodrigues de Souza- UEFS
Luiz Carlos Gonçalves de Almeida –APEOESP
Manoel Fernandes de Sousa Neto – FFLCH/USP
Márcia Aparecida Jacomini –Unifesp
Marcos Natanael Faria Ribeiro – IFSP/SJC doutorando Unifesp
Maria José Oliveira Duboc -  UEFS
Marian Ávila de Lima Dias –Unifesp
Marieta Gouvêa Penna –Unifesp
Marilene Lopes da Rocha -  UEFS
Marta Alencar dos Santos -  UEFS
Mellina Azevedo Verol de Freitas – discente UniRio
Monique Rufino Silva Pessoa – docente Centro Paula Souza /mestranda Unifesp
Noeli Aparecida Fernandes - Supervisora aposentada SEDUC-SP/mestranda Unifesp.
Otília Fiori Arantes –FFLCH/USP
Paulo Arantes – FFLCH/USP
Pricila Oliveira de Araújo - UEFS
Raissa Pinheiro- mestranda Unifesp
Raquel Gomes D’Alexandre / Professora de Ensino Superior – SP
Reinalda Souza Oliveira – UEFS
Reinaldo Ortiz de Sousa - PCNP - SEDUC-SP/ doutorando Unifesp
Ricardo Casco –Universidade Ibirapuera
Rodolfo Santos de Miranda - Docente PM Terra Nova/ Rede Estadual da Bahia 
Rodrigo Barros Gewehr –UFAL
Rodrigo Conceição Ferreira de Moraes- docente SME/SEE-SP /mestrando Unifesp
Rosana Evangelista Cruz –UFPI
Rosana Gemaque –ICED-UFPA
Roseli Giordano –UFPA
Roxana González – UNDAV - Argentina
Sandy Lira Ximenes Lima – mestranda Unifesp
Sandra da Cunha Cirillo – mestranda IPUSP
Sandra Gomes Dumont Defendi - Supervisora SME/ doutoranda Unifesp
Selma Soares de Oliveira -UEFS
Selma Venco – FE Unicamp
Sergio Stoco –Unifesp
Silvio Carneiro – UFABC
Simone Moreira de Moura –UEL
Solange Mary Moreira Santos -  UEFS
Suely dos Santos Souza -  UEFS
Suria Seixas Neiva Pasini – discente Senac SP
Syomara Assuite Trindade -  UEFS
Tatiane Damaceno Barreto SME/SP e mestranda Unifesp
Thais Fernanda Martins Nascimento - mestranda Unifesp
Valdécio Silvério Bezerra –  Unicid
Valdelúcia Alves da Costa – UFF
Valter Pedro Batista – Supervisor Seduc/SP e doutorando Unifesp
Vanessa Batista Mascarenhas - Docente Feira de Santana
Vanessa do Nascimento Vicentini  SME-SP / mestranda Unifesp
Vanessa Santana dos Santos – docente UFJF e doutoranda Unifesp
Vânia Pereira Moraes Lopes – docente da Rede Estadual de Educação Bahia
Verissimo dos Santos Furtado Filho - Professor Seduc-SP/Doutorando Unifesp
Walson Lopes - Professor Seduc/SP


domingo, 21 de junho de 2020

O que se trama contra os Povos Indígenas



Uma ofensiva geral ameaça territórios, direitos e saberes em nome do desenvolvimento — mas para instalar um neoextrativismo. O que está em jogo. Que normas expressam o ataque. Por que falamos num “colonialismo persistente”


Por Diogo Rocha e Marcelo Firpo Porto


Sônia Bone Guajajara, Coordenadora Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), durante
o Acampamento Terra Livre, 2019. Foto: APIB

Por Diogo Rocha e Marcelo Firpo Porto

Título original: Povos Indígenas, Neoextrativismo e Colonialismo Persistente
Este texto provém de um artigo mais amplo originalmente publicado no Observatório Covid-19 da Fiocruz. Para uma análise mais aprofundada das implicações territoriais e sociais das mudanças legislativas em curso, acesse-o aqui.


A covid-19 desnuda nossas injustiças e devem ser confrontadas

As tendências históricas de injustiças, exclusão radical e violência contra indígenas e outros grupos vulnerabilizados se agudizam num contexto em que múltiplas crises se convergem: ecológica, política, econômica, social e sanitária. Nos dias que correm, a dimensão sanitária da crise civilizatória está em maior evidência devido à pandemia de covid-19, que vem infectando milhões de pessoas e já matou mais de 330 mil no planeta – números impressionantes que continuarão a crescer até que vacinas e terapias em desenvolvimento estejam disponíveis. No Brasil crescem vertiginosamente os números de infectados e mortos, e nos aproximamos tragicamente dos EUA, atual epicentro da pandemia. Uma aproximação não casual entre países cujos presidentes compartilham ideários neoliberais com narrativas racistas e negacionistas.

Esse texto apresenta elementos históricos e atuais sobre o processo de vulnerabilização de uma população particularmente ameaçada no Brasil, os povos indígenas. Nosso foco são as ameaças aos direitos territoriais, culturais, ambientais e à saúde no contexto do avanço da mineração e do garimpo sobre suas terras, que já existiam, mas que são reforçadas em tempos de pandemia. Com o necessário isolamento social enfrentamos um duplo desafio: de um lado, ações em curso como as do garimpo intensificam a propagação da covid-19, cujas consequências são agravadas pela fragilidade do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI/SUS). De outro, o isolamento dificulta ainda mais a participação na arena política e espaços de decisão numa conjuntura que ameaça os direitos indígenas. As ameaças estão em pleno curso com o Projeto de Lei (PL) 191/2020 que tramita na Câmara dos Deputados e regulariza a exploração de recursos minerais, hidrocarbonetos, agronegócio e o aproveitamento de recursos hídricos; a Medida Provisória (MP) 910/2019, recentemente substituída pelo PL 2.633/2020 que está em discussão no Congresso Nacional e, em essência, regulariza a grilagem, ou seja, as ocupações em terras públicas federais; e a Instrução Normativa (IN) 09/2020, emitida pela Funai em 22 de abril de 2020. Por meio dela, em vez de proteger os direitos indígenas o órgão passa a ser uma instância de certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores de Terras Indígenas.

Os efeitos sociais e econômicos da maior pandemia deste século são incertos, mas já se prevê que sejam profundos devido à paralisia da economia mundial e da necessidade dos Estados nacionais socorrerem empresas e pessoas, colocando em suspensão todo o receituário econômico neoliberal que dominou corações e mentes pelo menos nos últimos quarenta anos. Espera-se que a crise econômica irá afetar principalmente os países periféricos, que dependem da exportação de commodities e do turismo para assegurar o equilíbrio de sua balança comercial.

Os próximos tempos serão estratégicos na confrontação entre duas possibilidades na encruzilhada civilizatória em que nos encontramos. Ou teremos realinhamento de políticas sociais e econômicas de proteção aos grupos mais vulneráveis frente a covid-19; ou a manutenção de políticas neoliberais alinhadas a ideologias racistas, que pretendem manter ou mesmo acelerar o crescimento econômico e o neoextrativismo, multiplicando injustiças sociais, ambientais e sanitárias. A crise global abre brechas para que povos indígenas e outros grupos sociais se mobilizem junto com a sociedade para protegerem seus direitos territoriais e modos de vida. Mas também possibilita o avanço de uma agenda política excludente e anti-indígena face ao caos político e social que o país vive e com o qual deverá continuar a conviver nos próximos tempos.

Neoextrativismo, garimpo e padrão-ouro como colonialismo persistente

As relações entre a sociedade brasileira e os grupos étnicos e raciais politicamente subalternizados que coabitam o território hoje denominado de Brasil são historicamente marcadas por algumas constantes: racismo, violência e negligência em relação ao bem-estar daqueles que estão em desvantagem em uma estrutura social desigual assente em três eixos de discriminação: classicismo, racismo e etnocentrismo.

Quanto menos recursos econômicos e mais distante um povo se encontra do “padrão-ouro” da sociedade brasileira, mais se torna vulnerável a todo tipo de violação dos seus direitos fundamentais, e mais é preciso lutar para vê-los respeitados. A metáfora do padrão-ouro, usado como lastro do sistema monetário internacional em vigor até 1914, mas que até hoje funciona como investimento e enfeite de milionários, nos serve para ilustrar tanto a busca obsessiva por riquezas pelo capitalismo neoliberal, como sua atualização no modelo neoextrativista que incentiva o garimpo, causa de intensa degradação socioambiental em terras indígenas. Serve também para ilustrar o racismo decorrente dos padrões éticos e estéticos excludentes da modernidade eurocêntrica.

Esse padrão-ouro racista se refere, portanto, às tendências históricas de inclusão/exclusão radical e racial de nossa sociedade: branca, eurodescendente, falante do português e mais recentemente do inglês, educada para ver o mundo a partir do olhar do colonizador, envergonhada de suas raízes ameríndias e africanas, economicamente liberal, mas conservadora nos costumes, e extremamente permissiva quanto aos direitos sociais, humanos e ambientais. O padrão-ouro é um símbolo do colonialismo persistente, e que junto com a capitalismo neoliberal e o patriarcado representam as três formas de dominação que diversos processos emancipatórios e lutas sociais buscam confrontar.

Há fluxos e refluxos em diversos setores ao longo da história econômica do País, mas o setor mineral, há mais de quatrocentos anos, tem ocupado uma posição estratégica em nossa pauta de exportações, sendo, junto com o agronegócio, uma das principais frentes de expansão da economia brasileira contemporânea. É também uma das principais ameaças aos povos e comunidades tradicionais, entre os quais se destacam os territórios indígenas, que até hoje, devido às especificidades da legislação indigenista vigente, funcionaram como um freio legal a essas atividades.

As relações entre garimpo ou mineração com a consequente desestruturação do modo de vida e os impactos sobre o bem-estar dos povos indígenas na América são coetâneas ao próprio processo de colonização do continente. Desde o início da conquista das terras americanas pelos europeus, o desejo de rápida riqueza através do extrativismo do ouro, da prata e de outros metais e pedras preciosas tem mobilizado o translado da população europeia para as Américas e impulsionados processos de extermínio e desterritorialização dos povos que aqui viviam. Além disso, contato e contágio quase sempre caminharam juntos. Das cerca de 70 milhões de vidas que se, segundo estimativas, foram ceifadas em decorrência da violência e virulência do processo colonizador, incontáveis foram perdidas devido a epidemia de doenças para as quais os povos indígenas não possuíam imunidade e que dizimavam etnias inteiras rapidamente. Esse processo está se reatualizando com a ameaça da expansão das frentes de mineração e garimpos ilegais em plena pandemia de covid-19.

Extermínio, continuidade e resiliência dos povos indígenas e suas lutas atuais

Tanto as metrópoles coloniais quanto os países que surgiram após as independências na América praticaram algum tipo de extermínio legalizado, muitas vezes chamado eufemisticamente de “guerras justas” ou “guerras indígenas”. Portanto, aos que sobreviveram às epidemias, à violência da escravidão ou ao genocídio patrocinado pelos Estados, restou o confinamento em parcelas exíguas de seus territórios tradicionais, o arrebanhamento missionário ou o isolamento voluntário nas porções mais remotas do continente.

O extermínio não era a única alternativa possível nesses contextos. Em um ambiente desconhecido, por vezes inóspito, e com uma população tão numerosa e diversa como no continente americano, inúmeras situações de negociação se deram entre os povos indígenas e os colonizadores. Especialmente quando estes últimos estavam em desvantagem, alguns povos conseguiram preservar parte de seus territórios tradicionais, mesmo em regiões onde o extermínio foi mais intenso e as frentes de colonização eram mais antigas, como no litoral brasileiro, especialmente no Nordeste, no Sudeste, na região do rio Paraguai, no Centro-Oeste e em algumas regiões da Amazônia.

Nesses espaços de fluxos e trocas, ainda que marcados pela violência e pela crescente subalternização, discriminação e espoliação das populações indígenas, estas fortaleceram formas sutis de resistência que se deram pela delimitação de porções do território nacional exclusivos para usufruto indígena. Se no período colonial estas terras de domínio indígena, ou indigenato, eram consideradas uma cruel “recompensa” concedida pela metrópole portuguesa aos “serviços” prestados pelos povos que nelas subsistiam, muitas vezes envolvendo a guerra contra outros povos indígenas, paulatinamente as terras indígenas passam a ocupar um espaço sui generis no ordenamento jurídico nacional.

Com muitas transformações ao longo do período colonial e republicano, a forma legislativa atual das terras indígenas começou a se cristalizar a partir do Estatuto do Índio, de 1973. Ainda em vigor, ele concebia os povos indígenas como juridicamente incapazes, tal como os doentes mentais, as mulheres, os analfabetos e outros grupos sociais discriminados na mesma época. Estabelecia um regime de tutela estatal a ser conduzida pela Fundação Nacional do Índio (Funai), criada em 1964 para substituir o antigo Serviço de Proteção do Índio – SPI. Mas esse Estatuto assegura a eles “a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes”. Essas terras ainda não eram vistas como um direito dos povos indígenas, mas parte de uma estratégia de proteção do Estado a fim de garantir que eles não fossem extintos e assegurar espaços mínimos para sua reprodução social enquanto não fossem integrados à sociedade nacional – objetivo último da política indigenista da ditadura militar.

Diferente da política de extermínio e integração forçada vigente nos séculos coloniais anteriores, essa política baseava-se num certo positivismo e determinismo social, que previa ser inevitável a integração dos povos indígenas à “comunhão nacional” quando alcançassem “nosso” estágio de evolução social e desenvolvimento. Ainda que assegurasse o direito à vida dos povos indígenas – nem sempre garantido nas relações entre eles e a sociedade colonial e, posteriormente, o Estado-Nação brasileiro – a reprodução de sua diversidade cultural era vista como uma concessão temporária do Estado até que o “processo civilizador” se efetuasse entre eles.

A conquista do território como um direito indígena inalienável e a reprodução dos seus modos de vida como um direito cultural fundamental só aconteceria depois com a redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988. A chamada Constituição Cidadã os reconheceu como cidadãos plenos pela primeira vez, assegurando a eles simultaneamente o direito de existir, subsistir, se organizar e se fazer representar autonomamente. Um marco histórico desse processo foi o discurso feito em 1987 na Assembleia Constituinte por Ailton Krenak, então uma jovem liderança e atualmente autor de livros recentemente publicados como Ideias para adiar o fim do mundo e O amanhã não está à venda.

A partir daquela data, a tutela indígena foi extinta juridicamente e o Estado teria o dever de demarcar todos os territórios tradicionais indígenas em até 5 anos. O seu direito à terra foi inscrito como um direito originário. O processo de demarcação seria, supostamente, apenas declaratório. Foi uma importante vitória política do movimento indígena, cuja auto-organização já vinha se intensificando principalmente desde meados dos anos 1980. Desde então, os territórios tradicionais indígenas foram considerados indisponíveis e inalienáveis, devendo ser registrados como patrimônio da União de usufruto exclusivo dos povos que nele habitam. Tais direitos são mais que a reparação de uma dívida histórica a um conjunto de povos oprimidos pela colonização. Devem também ser vistos como de suma importância para que suas cosmologias, visões de mundo e sabedorias possam interagir na superação da atual crise civilizatória gerada pela modernidade ocidental, que caminham para a destruição e a insustentabilidade a nível planetário.

Essa situação jurídica peculiar protegeu alguns povos indígenas das pressões por fragmentação territorial que historicamente afetaram os territórios e domínios demarcados. Ao longo da História, o esbulho não foi raro e muitas vezes as sesmarias concedidas a determinados povos foram vendidas aos lotes pelos seus beneficiários ou consideradas terras públicas. A lei de Terras, de 1850, determinou que os domínios indígenas deveriam ser reivindicados, o que na maioria dos casos não foi feito, tornando-as vulneráveis a concessão a particulares. Ao mesmo tempo, os povos indígenas têm permanecido vulneráveis a mudanças legislativas propostas com o intuito de sustar ou dificultar o acesso a tais direitos. Isso sempre aconteceu na história da República, e atualmente as conquistas de 1988 encontram-se fortemente ameaçadas.

Há hoje cerca de 110 conflitos ambientais envolvendo mineração, garimpo e siderurgia registrados no Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil(2019), um projeto do Neepes/Fiocruz iniciado em 2008 e disponível na internet desde 2010. Apesar das limitações legais, os povos indígenas estão envolvidos em 36 casos, seja porque foram afetados indiretamente por acidentes ambientais e outras consequências das atividades de mineração, seja porque seus territórios foram invadidos por garimpos ilegais, ou ainda porque o processo de demarcação de seus territórios ainda não foi concluído e eles não conseguem, por causa disso, realizar o chamado processo de desintrusão, através do qual todas as atividades não-indígenas seriam cessadas.

A defesa da mineração e do garimpo tem sido feita sob o argumento de promover a necessária geração de empregos em um cenário de aguda crise econômica que já vinha se configurando no Brasil, e que deve ser aprofundada pela pandemia de covid-19. Tal processo poderá retroceder a situação atual àquela vigente durante boa parte da história da relação desses povos com a sociedade brasileira, qual seja, de cidadãos tutelados que não têm a prerrogativa de decidir o futuro de seus territórios.

As ameaças decorrentes da flexibilização para a exploração de terras indígenas: Marco temporal, o PL 191/2020, IN/FUNAI/09 e o PL 2.633/2020

Marco Temporal: O princípio da flexibilização dos territórios indígenas frente à mineração e ao garimpo começou justamente em resposta a uma tentativa do Estado brasileiro, representado na ocasião pelo governo do estado de Roraima. Deputados e senadores do estado, interpuseram uma ação para sustar a portaria de homologação assinada pelo presidente Lula em abril de 2005, a qual determinava que uma área de 1,7 milhões de hectares seriam de usufruto exclusivo dos povos Wapixana, Ingaricó, Macuxi, Patamona e Taurepangue sob a denominação de Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol. A demarcação afetava principalmente rizicultores que utilizavam a terra e a água ali disponíveis para produzir arroz. Contudo, apesar de reconhecer a validade da demarcação da TI, o STF estabeleceu para aquele caso condicionantes que estabeleciam as bases para a legitimidade do processo de demarcação. Entre elas, o chamado marco temporal, que estabelecia que os indígenas deveriam estar no território em disputa por ocasião da promulgação da Constituição de 1988. Apesar disso, o STF estabeleceu que essa decisão não seria vinculante, isto é, só se aplicava àquele caso específico.

Ainda assim, o princípio do marco temporal tem sido apropriado por outras instituições do Estado e está sendo usado como pretexto para se negar a demarcação de terras indígenas de povos que ao longo de sua história foram expulsos ou compulsoriamente transladados de seus territórios tradicionais. O primeiro passo nesse sentido foi a publicação, no governo Temer, do Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União, que estabelecia a tese do marco temporal como parâmetro a ser seguido pela Funai em todos os processos de demarcação dali em diante. Seus efeitos só foram suspensos em 07/05/2020, a partir de decisão liminar concedida pelo ministro Edson Fachin.

Projeto de Lei 191/2020: Mas o parecer AGU 001/2017 não é atualmente a maior ameaça aos direitos fundamentais dos povos indígenas. Além da luta diária pela sobrevivência no contexto da maior ameaça sanitária deste século, eles também estão mobilizados em torno da resistência ao Projeto de Lei 191/2020, proposto pelo governo Bolsonaro, que tem atuado para vulnerabilizar a política territorial indigenista vigente e submeter os territórios indígenas à lógica do agronegócio.

O PL191/2020 tem sido considerado mais um passo na agenda anti-indígena do atual governo. Ele exclui do rol de terras indígenas todas aquelas que ainda estão em alguma etapa do processo administrativo de demarcação e por isso ainda não foram homologadas, em consonância com a recente Instrução Normativa 09/2020 da Funai, que também limita a categoria de terras indígenas àquelas já homologadas para efeitos de emissão de declaração de limites e resposta a consultas oficiais sobre a existência ou não de terras indígenas em determinada áreas.

Ambas mudanças legais têm sido denunciadas pelo movimento indígena como tentativas de invisibilizar o histórico de exclusão dos povos indígenas e se aproveitar de ineficácia e inércia de governos anteriores no tocante ao dever de demarcar os territórios tradicionais indígenas para permitir o avanço de empreendimentos danosos nessas áreas. Uma iniciativa que amplia a invisibilidade social indígena que já era o mote do parecer 001/2017 da AGU (do Marco Temporal), citado anteriormente.

Contudo, o PL191/2020 vai além. Se os dispositivos infralegais vulnerabilizavam os povos indígenas cujos territórios ainda não foram demarcados, o projeto de lei pretende também permitir a mineração, o garimpo, a agricultura com transgênicos, além da construção de aproveitamentos hidrelétricos nesses territórios. Se aprovada, essa lei vai na prática transferir para o Executivo a prerrogativa constitucional do Congresso Nacional de autorizar mineração e garimpo em terras indígenas, simplificando ainda mais o trâmite de liberação dessas atividades nas TIs. Além disso, impedirá o poder de veto dos povos indígenas sobre essas questões, limitando a consulta a um processo formal de negociação de compensações.

O PL também prevê a autorização imediata de todos os requerimentos minerários anteriores à homologação das TIs. De acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), isso afetaria diretamente 237 terras indígenas (175 não homologadas e 62 homologadas), sobre as quais existem cerca de 3.843 requerimentos de pesquisa e lavra na Agência Nacional de Mineração (ANM). Isso também afetaria, somente num primeiro momento, cerca de 25 grupos indígenas em isolamento voluntário ou de recente contato. Esse número não leva em consideração a possível aprovação de outros requerimentos que foram propostos após as homologações. Ressalta-se que o PL não versa apenas sobre mineração, mas pretende facilitar o licenciamento de outras atividades que potencializam o garimpo e a mineração, como a geração de energia, a produção de alimentos em larga escala e a infraestrutura logística.

Projeto de Lei 2633/2020: Os povos indígenas atualmente ainda enfrentam outra importante tentativa de flexibilização de seus direitos territoriais. Trata-se da Medida Provisória 910, recentemente convertida no Projeto de Lei 2633. Seu objetivo é “modificar a sistemática legal que trata da regularização fundiária das ocupações incidentes sobre terras situadas em áreas da União”. Tal medida foi considerada pelo Ministério Público Federal como um “estímulo à grilagem de terras públicas” com potencial para ampliar o desmatamento das áreas florestais, intensificar os conflitos no campo e frear a política de reforma agrária brasileira.

De acordo com análise da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), ao liberar a regularização fundiária para interesses privados em todas as áreas da União, o projeto colocaria em risco o“acesso justo e legítimo à terra, mediante reforma agrária, o patrimônio público econômico e ambiental e os direitos de grupos étnicos e culturais”. Poderia regularizar ocupações privadas até mesmo em terras indígenas não-demarcadas, que como já salientamos antes, são constitucionalmente declaradas como indisponíveis e cujos títulos sobre elas são considerados sem efeitos. Apesar da flagrante inconstitucionalidade do texto, sua aprovação pelo Congresso Nacional permitiria que o Incra emitisse títulos sobre as áreas em processo de demarcação (estas foram excluídas do rol oficial de terras indígenas pela IN09), consolidando assim uma agenda que privilegia certos interesses econômicos do país em detrimento dos direitos territoriais, culturais e ambientais indígenas e de outros grupos vulnerabilizados, como quilombolas, comunidades tradicionais e camponeses.

Outro ponto que tem sido denunciado pelo MPF é que o projeto permitiria a regularização de áreas já desmatadas, em flagrante desacordo com a atual legislação ambiental brasileira. De acordo com Daniel Azeredo Avelino, secretário-executivo da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável pela área ambiental, a MP 910:

… pretende regularizar ações ilegais que nós temos hoje em todo o país (…) ela permite que criminosos, aquelas pessoas que desmataram a Amazônia e cometeram os mais variados crimes, fiquem com as suas áreas. E o pior, eles podem fazer isso pagando um preço bem menor do que aquele que é praticado pelo mercado(VídeoMPF contra a MP da Grilagem, O Eco, 11/05/2020).

Por esse motivo, a MP-910 foi objeto de repúdio do movimento indígena, sendo citada no documento final do Acampamento Terra Livre 2020, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB –, que excepcionalmente devido à epidemia de covid-19 ocorreu pela internet, através de teleconferências e lives por redes sociais.

Uma situação que pode ser ainda mais agravada devido à crescente fragilização das agências estatais que atuam nesses territórios, como a já citada Funai, o Ibama e até mesmo a Sesai. Esse processo tem sido denunciado pela APIB e outras organizações da sociedade civil, justo num momento de pandemia e de necessidade de recursos para que as instituições responsáveis supram a carência de pessoal, de equipamentos de proteção individual e outros recursos para promover mais efetivamente o atendimento da população indígena. Esta encontra-se ameaçada tanto pela covid-19 quanto por outras doenças que já grassavam nesses territórios, como a malária, ou que são intensificadas pela exposição a subprodutos do garimpo e da mineração, como a intoxicação crônica por mercúrio.

O que está em jogo é o futuro do país e do planeta diante da crise civilizatória. Os povos indígenas, seus saberes e práticas representam um lastro de sabedoria fundamental para que a humanidade possa construir as bases de democracia, convívio e respeito à natureza que neste momento encontram-se profundamente abaladas.





terça-feira, 16 de junho de 2020

Nos limites da Democracia


Por Jordana Dias Pereira 


Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos
Autor: Luiz Eduardo Soares
Ano: 2019
Editora: Boitempo




Luiz Eduardo Soares abre seu livro Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos com uma dedicatória às mães dos jovens mortos pela polícias e às mães dos policiais também mortos nos confrontos pelo país. Para ele, se essas mães compreenderem que o inimigo está em outro lugar “a politização do sofrimento promoverá uma revolução no Brasil”. A frase não poderia ser mais oportuna depois da comovente cena em que um policial consola a mãe de Willian Augusto da Silva, sequestrador de um ônibus em Niterói que foi alvejado pela polícia do Rio de Janeiro em agosto passado. William levava consigo uma arma de brinquedo e tinha desequilíbrio mental. A morte dele foi comemorada aos pulos pelo governador Wilson Witzel. O mesmo que menos de um mês depois afirmou que a política de segurança pública do estado está no caminho certo. A declaração veio após o assassinato, também pela própria polícia, da menina Ágatha Felix, de 8 anos, no Complexo do Alemão.

Antropólogo, escritor e pós-doutor em Filosofia Política, Soares é hoje um dos maiores nomes da área de segurança pública no Brasil. Nascido no Rio de Janeiro, ocupou, entre outros cargos públicos, o posto de secretário Nacional de Segurança Pública entre janeiro e outubro de 2003 (primeiro governo Lula).

Em Desmilitarizar, livro dividido em quatro capítulos, o antropólogo constrói a noção de violência como uma dimensão própria da sociedade, sendo capaz de criar suas próprias e complexas dinâmicas. Distancia-se assim das noções que acreditam que a violência é apenas um efeito secundário das imensas iniquidades e da opressão de classe. Dessa forma, Soares defende que o problema no Brasil tenha uma centralidade que perpassa a máxima “resolvendo os problemas da desigualdade, os índices de violência diminuirão”, como num passe de mágica. Até porque, de fato, a empiria nos traz resultados diferentes: desde a democratização, passando pelos governos do PT– em que se reduziram as desigualdades –, a violência aumentou no país. Os índices de homicídios saltaram de menos de 15 mil por ano no início da década de 1980 para mais de 58 mil em 2018. Um aumento de quase 400% em 30 anos. O Brasil mata mais que os continentes da Europa, América do Norte e Oceania juntos.

A resposta do senso comum ligada à “guerra contra o crime”, “bandido bom é bandido morto” e “mete todo mundo na cadeia” tampouco parece ajudar. O encarceramento explodiu no mesmo período: no início dos anos 1990, a população carcerária era de 100 mil. Hoje bate os 700 mil. É a terceira maior população carcerária do mundo em números absolutos, e o maior índice de crescimento dessa população, desde 2002. O populismo penal, apesar de ter elegido políticos no último período, inclusive o presidente da República em 2018, não apresenta soluções factíveis. Logo no início do livro, Soares diz: “Pretendo demonstrar que, mesmo do ponto de vista exclusivamente pragmático, o descumprimento dos direitos humanos por parte das polícias leva a sua degradação e seu consequente enfraquecimento e conduz ao fortalecimento do crime. Em bom português: prezada leitora, prezado leitor, aceitar e estimular a violência policial é um tiro no pé. Se você deseja a segurança de sua família e não se importa se o preço a pagar for o assassinato de jovens nas favelas, atenção, pense bem. Não vai dar certo. Quer uma prova irrefutável? Já não deu (...) Portanto, quem deseja segurança deve defender o respeito rigoroso aos direitos humanos e à legalidade constitucional por parte dos policiais, mesmo que não concorde com os valores expressos nos documentos internacionais de que o Brasil é signatário e mesmo que deseje ver a Constituição alterada”. (páginas 15 e 16). Quando a polícia não respeita as leis, quando deixa de representar a legalidade, quando ela e o crime são indistinguíveis, reina a insegurança.

Ou seja, a despeito da lógica punitiva que dominou as políticas na área nos últimos anos, a população não passou a se sentir mais segura. Além disso, a superlotação das cadeias gera quadros de alerta devido às péssimas condições de higiene, a polícia brasileira segue matando inocentes nas favelas e periferias do país e é diagnosticada com depressão, a ponto de o número de suicídios entre policiais ser maior do que o número de mortes em serviço.

Os dados apresentados já são, em maior ou menor medida, conhecidos, debatidos na mídia. A potência do livro não está aí, mas sim no diagnóstico profundo para entender as raízes do problema e os caminhos para desenhar possíveis soluções.

Primeiro elemento central: o país não quer ou não sabe discutir a temática. Entre uma direita com baixo compromisso democrático; um liberalismo – no sentido de John Stuart Mill – com pouca aderência no país; uma esquerda que desempenha um importante papel de denúncia, mas com baixa capacidade de formulação; uma categoria profissional – os policiais militares – excluída do debate público; e uma sociedade que não conseguiu romper com as amarras escravagistas e autoritárias para a construção de uma sociedade moderna, o debate torna-se nebuloso e com baixa condição de se chegar a consensos mínimos.

Buscando esse consenso mínimo, o autor faz uma retomada histórica. Na raiz dos problemas estão as desigualdades abissais, o racismo estrutural, a arquitetura institucional da segurança pública que atribui – via artigo 144 da Constituição Cidadã de 1988 – pouca responsabilidade à União (ente federativo que teria a capacidade de reformas mais estruturais) e pouca autoridade aos municípios (onde os conflitos se dão, afinal, nos territórios). A maior parte da responsabilidade pela segurança pública fica a cargo nos estados, num desenho absolutamente incompatível que gera ingovernabilidade e hostilidade. Somada a isso, uma crise econômica aguda que se seguiu a 1988 neutralizou a percepção de mudança, diminui as virtudes da nova institucionalidade e permitiu que o passado seguisse se reproduzindo no imaginário na população. O potencial transformador da Carta de 1988 se enfraqueceu.

Soares faz uma avaliação profunda sobre os resultados do modelo de polícia promulgado na Constituição, bem como uma crítica à política de drogas no país. De maneira geral, pode-se dizer que, pelo modo como se estruturou o esquema de drogas e tráfico, consolidou-se uma cadeia de crime que é interessante economicamente para o crime organizado (facções), para as forças policiais permeadas pela corrupção, para as milícias, e para os políticos que se beneficiam desse esquema. É uma cadeia de ganha-ganha com relativa estabilidade benéfica para a economia do crime. Perde a população vulnerável das periferias e favelas do país, que passa a ser alvo de uma falsa “guerra” contra o crime e contra as drogas instaurada pelo Estado – que, em maior ou menor medida, está imbricado com o próprio crime.

O autor faz assim um texto necessário em tempos permeados pelo populismo irresponsável e salvacionista de extrema-direita, que apenas agrava uma situação extremamente complexa. Quando camadas superiores do poder (aqui incluindo agentes da Justiça) oferecem cobertura à barbárie e fazem vista grossa para a violação de direitos humanos nos territórios, o crime se fortalece.

É um livro que tem como objeto a democracia brasileira e seus limites, e como objetivo final ajudar na transição – sempre incompleta e inconclusa no país – para um Estado Democrático de Direito, “valores sem os quais não haverá país que mereça esse nome!” (pág. 19).


Jordana Dias Pereira é formada em Sociologia pela Unicamp, mestranda, pertencente ao Grupo de Estudos Sobre Violência e Administração de Conflitos (Gevac/UFSCAR) e integra o Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo


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