UMA ENTREVISTA COM AIRTON SEELAENDER
Desde que assumiu, Bolsonaro nomeou 16 reitores que não foram eleitos e
intimidou acadêmicos críticos ao desastre pandêmico. Para resistir a esses
ataques e a perseguição de fanáticos da extrema direita na academia,
conversamos com Airton Seelaender, professor da UNB especialista em
colaboracionismo jurídico em regimes autoritários.
Hitler e Mussolini não perderam tempo
alterando a Constituição de Weimar e o Estatuto Albertino para suprimir a
liberdade de cátedra. Foto de Lucas Tavares / Zimel Press.
Entrevista por Andre Pagliarini
Nos últimos anos a democracia
universitária acabou. Desde que assumiu, ao longo de seu mandato, Bolsonaro
nomeou 16 reitores que não foram eleitos pela comunidade acadêmica. Pela
Constituição, desde 1996, as instituições de ensino federal encaminham uma
lista tríplice de três candidatos à reitoria mais votados internamente ao
presidente da República. Em live no final do ano passado, Bolsonaro afirmou que não quer “interferir politicamente em
lugar nenhum”, mas que verifica os nomes das listas encaminhadas pelas
universidades e detecta candidatos “militantes”.
Mas não é só a democracia universitária
que o bolsonarismo está destruindo. O ex-reitor da Universidade Federal de
Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, foi alvo de intimidação por meio de um Termo de Ajuste de
Conduta em razão a suposta “manifestação desrespeitosa direcionada ao
presidente” num debate online. Hallal entrou na mira de Bolsonaro porque vem
conduzindo uma pesquisa sobre a inexpressiva atuação do governo diante da
pandemia do coronavírus que já ceifou a vida de mais de 409 mil
brasileiros.
Para entender mais as origens
autoritárias dessas ações, André Pagliarini, colaborador da Jacobin, conversou com
Airton Seelaender, professor de Direito Público e História do Direito na
Universidade de Brasília, que quando fazia sua pós-graduação em Frankfurt, na
Alemanha, teve contato com os trabalhos dos juristas do nazismo. Seelaender
lembra que Hitler e Mussolini não perderam tempo alterando o Estatuto Albertino
para suprimir a liberdade de cátedra. E, antes do nazismo lançar sua blitzkrieg contra as cátedras,
já usava jovens nazistas para intimidar professores judeus, liberais e
socialistas.
Para Seelaender, essas atitudes do governo Bolsonaro somadas com o denuncismo ideológico da extrema direita e a infiltração de fanáticos em órgãos estatais estão jogando as universidades brasileiras num obscurantismo autoritário nunca visto antes.
Fale um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e profissional. Como que você veio a estudar o direito contemporâneo? O que te interessou nessa área?
Nos Anos 80, a manipulação do povo brasileiro pelo oligopólio privado da
mídia era brutal. Alguns meios de comunicação seguiam colaborando com o então
decadente regime ditatorial – inclusive mentindo abertamente, como no caso da
tentativa de fraude eleitoral nas eleições de 1982 no Rio de Janeiro. Uma
gigantesca manifestação contra a ditadura, em que eu estivera pessoalmente, foi
apresentada na TV como um “show” de comemoração do aniversário de São Paulo.
Quando entrei na Universidade de São Paulo, em 1986, comecei a lidar
mais diretamente com o direito dos governados à informação – alguns dos
primeiros artigos publicados sobre isso no Brasil são os que fiz quando era
estudante. Passei, depois, a escrever sobre o regime jurídico da televisão,
tentando encontrar formas de fazê-la servir melhor à democracia. Outros temas também
relacionados à liberdade de informação – como o controle dos trabalhadores
sobre seus próprios dados pessoais – também vieram a me interessar.
Naquela época distante, era às vezes difícil ingressar na pós-graduação
de algumas faculdades brasileiras de direito sem ter protetores e conexões.
Tentei, então, ir para a Alemanha, onde tive a sorte de ser aceito como
orientando por um notável historiador do direito, Michael Stolleis. A ele, a
Heinz Mohnhaupt e ao historiador português António Hespanha devo o melhor de
minha formação.
Ao retornar, trabalhei por vários anos na Procuradoria do Estado. Era
uma instituição séria, onde pude ver como as garantias dadas aos servidores
públicos eram essenciais para impedir que a coletividade fosse saqueada.
Em 2006, troquei a Procuradoria pela carreira de professor, que pagava
bem menos e era aqui bem menos respeitada. Acharam que eu tinha enlouquecido.
Mas não me arrependo, pois o que gosto mesmo é de ensinar e pesquisar. Passei a
lecionar História do Direito e Direito Público.
Graças a Deus, já deixei de ensinar Direito Constitucional. Livrei-me,
assim, do constrangedor dever de comparar a nossa Constituição democrática com
a atuação do Ministério Público e de outras instituições sob o bolsonarismo.
Você já tratou em termos acadêmicos da questão dos juristas em regimes autoritários. Em um texto de 2017, você diz que o STF é “hoje absurdamente heroicizado como centro de resistência cívico-democrática” na ditadura. Como você vê esse assunto, tanto em termos históricos como atuais?
Enquanto estudava em Frankfurt a teoria legislativa do Iluminismo, tomei
contato com os trabalhos de Stolleis, Müller e Rüthers sobre os juristas do
nazismo. Comecei a ler sobre juízes e professores de Direito em Vichy, na
Itália fascista e em Portugal à época de Salazar. Também queria entender, é
claro, o que houve aqui no Estado Novo e sob a ditadura militar.
Quando comecei a tratar disso publicamente, o tema era tabu no Brasil.
Muitos dos juristas da ditadura estavam vivos e o debate era visto como um
risco aos “atestados de pedigree acadêmico” de alguns discípulos. Temendo que
um juiz apreendesse um livro que co-editávamos, um colega me implorou para
tirar do meu texto “Juristas e Ditaduras” longas passagens sobre juristas
brasileiros que haviam apoiado o regime militar. Um destes chegou a fazer uma
palestra, em uma faculdade, uma semana depois de outra que eu lá fizera sobre
ele.
Na Europa e na América Latina, compreender ditaduras pressupõe
compreender, também, os juristas que ajudaram a legitimá-las e a fazê-las
funcionar. É necessário estudar, a fundo, o fenômeno do colaboracionismo
jurídico.
Você me pergunta, também, sobre o STF. E já lhe adianto que a história
dele é bem mais complexa do que o tribunal costuma dar a entender.
O STF adora elogiar-se a si mesmo. E,
como o tribunal afeta a distribuição social do prestígio, da riqueza e do
poder, nunca faltará gente para glorificá-lo como a vanguarda da democracia.
Mas tais elogios não nos explicam por que um tribunal que tinha o dever de
defender a Constituição democrática de 1946 veio a receber oficialmente,
como chefe de Estado legítimo, um militar que
a havia violado. Os bardos da toga tampouco nos explicam por que ali se
exaltou, no passado, o Estado Novo e até Benito Mussolini.
Se a ala mais delirante de nossa extrema direita conseguisse, no futuro, transformar o Brasil em uma repugnante ditadura cheia de assassinos e torturadores, decerto não faltaria quem, décadas depois, escrevesse obras exaltando os ministros dos tribunais superiores que se houvessem revelado mais dignos e mais corajosos na defesa da democracia nada daquilo teria acontecido. Mas o que se poderia escrever, então, sobre os outros? Ou sobre os juízes e procuradores que houvessem chegado até a baixeza de normalizar a passagem para o novo regime?
Como você descreveria o clima político e social no Brasil hoje?
Professores de Direito não são as pessoas mais habilitadas para analisar
a situação social do país. Quem melhor a conhece é quem hoje afunda na miséria:
o cidadão médio que teve seus direitos trabalhistas destroçados, em nome de um
progresso econômico que depois não veio.
Quanto ao debate político atual, só quero registrar que é marcado pela brutalidade da linguagem, pelo culto à personalidade e pelo descaso geral e absoluto com o sofrimento humano, com o enorme sofrimento das pessoas.
Existe censura hoje
nas universidades brasileiras?
No Brasil de hoje, a onda de denuncismo ideológico e a infiltração de fanáticos em órgãos estatais têm gerado não só a consternação das pessoas decentes, mas também medo nos setores mais expostos a perseguições injustas – como é o caso dos professores universitários.
A Constituição brasileira proíbe restringir a liberdade de cátedra.
Decisões do STF proíbem restringir a liberdade de cátedra. Apesar disso, tal
liberdade pode desmoronar em poucos dias, se o medo de exercê-la vier a se
espalhar. Pouco ou nada restará dela, na prática, se os professores de
Economia, de Física, de Medicina ou de Sociologia passarem a temer inquéritos
policiais, processos criminais e apurações administrativas sobre o teor de suas
pesquisas, aulas e conferências.
No mundo todo, os ditadores sabem
disso. A ferramenta das ditaduras é o medo. Hitler e Mussolini não perderam
tempo alterando a Constituição de Weimar e o Estatuto Albertino para suprimir a
liberdade de cátedra: squadristi e funcionários
fanatizados cumpriam tal tarefa mais diretamente. Basta infernizar e intimidar
um pequeno percentual de professores, para que logo o medo impere e a
autocensura se imponha. Disso para o denuncismo sistemático e o “Heil Hitler!”
em sala de aula, é só um passo.
Felizmente não há “Reich de Mil Anos” que dure quinze e o Brasil não é o
“Terceiro Reich”. Mas a estreita correlação entre medo e censura não derrete no
calor dos trópicos. E é gritantemente óbvia.
Por isso mesmo, se no futuro algum Reitor, Procurador da República, Ministro da Educação, autoridade policial ou servidor público vier a produzir ou distribuir documentos oficiais ofensivos à liberdade constitucional de ensino, ele não poderá alegar que não imaginava qual seria o resultado. Ele estaria então assumindo, conscientemente, o risco de gerar o medo como fenômeno social. E estaria, conscientemente, assumindo o risco de servir à destruição da ordem constitucional democrática
Como resistir ao silenciamento e à intimidação?
Enquanto a Constituição democrática estiver em vigor e houver meios
legais para conter quem tente silenciar as universidades, estas devem
abertamente recusar obediência a “recomendações” e comandos ofensivos à
liberdade de cátedra. Deve-se, pois, simplesmente desobedecer quem, de modo
óbvio e acintoso, violar a Constituição – da mesma forma que se desobedeceria,
por exemplo, um prefeito neonazista que proibisse crianças negras e judias de
brincarem em praças públicas.
Os professores que se sentirem
intimidados ou censurados não devem se acovardar. Não devem se limitar a ficar
resmungando com familiares e colegas. Devem, isso sim, comunicar o ocorrido aos
sindicatos, partidos, jornais. Devem entregar a Declaração da Faculdade de
Direito da UNB a um advogado, pedindo que este tome as medidas legais para a
sua defesa (mandado de segurança, por vezes habeas corpus) ou para
responsabilizar pessoalmente os inimigos da liberdade de cátedra.
As autoridades universitárias sempre devem, também, oficiar o Ministério
Público, quando houver indícios claros de que o ato inconstitucional de censura
teve motivação política situacionista. Nesses casos, pode mesmo haver, em tese,
crime de prevaricação ou de abuso de poder.
Também é de fundamental importância
impedir que professores sejam agredidos, ofendidos ou ameaçados por grupos de
alunos de extrema direita. Antes do nazismo lançar sua Blitzkrieg contra as cátedras,
já usava jovens nazistas para promover a violência e a intimidação de professores
judeus, liberais e socialistas.
A base da democracia, porém, é o povo – e a ele e a seus representantes devem também os professores pedir socorro. Sem cidadão ativo, nada funciona. O mantra conformista “as instituições estão funcionando” é uma dupla tolice: elas não funcionam bem longe do olhar do povo e, onde funcionam mesmo bem, a ninguém ocorre pronunciar tal frase.
As faculdades de direito têm um papel diferenciado no debate sobre a liberdade de ensino?
As faculdades de direito não são Olimpos,
não têm precedência face a outras faculdades. Elas apenas estão mais
tecnicamente preparadas do que as demais para desmascarar a opressão
disfarçada de legalidade.
Pensemos, de forma meramente abstrata,
em um imaginário politiqueiro de extrema direita que usasse e abusasse
de uma alta posição jurídica no aparato estatal para dar vazão a seu fanatismo
descontrolado. Suponhamos, também só teoricamente, que ele tivesse por ídolo um
astrólogo e desejasse, por isso mesmo, forçar todos os professores de Astronomia
a ensinarem o Zodíaco em universidades públicas. Ora, não haveria astrônomo que
não tremesse, recebendo esse comando despótico e absurdo em um papel timbrado,
cheio de solenes referências a artigos de leis.
Se a mesma autoridade imaginária exigisse de uma faculdade de direito
que ensinasse “Astrologia Judiciária” (baboseira que já teve fãs no passado), o
resultado seria, no entanto, muito diferente. Após gargalhar em uníssono, a
faculdade tomaria providências para que tal autoridade enfim perdesse seu cargo
e fosse processada criminalmente.
Astrônomos, antropólogos, economistas, biólogos: todos se sentirão mais seguros, se as faculdades de direito sempre impedirem, no futuro, que o autoritarismo, ogro horroroso, ouse passar por fadinha da legalidade.
Qual recado você daria aos estudiosos,
acadêmicos, professores e educadores ao redor do mundo? Por que os
acontecimentos do Brasil importam para além da América Latina?
Apelo aos professores, estudiosos e educadores do mundo todo para que olhem o Brasil. Para que não abandonem seus colegas brasileiros. Nós, que já lutamos para sobreviver a um stalingrado sanitário, não merecemos ser impedidos de pensar, pesquisar, debater e ensinar em liberdade.
Toda vez, no passado, em que a liberdade foi atacada no Brasil, logo o
problema veio a contaminar o restante da América Latina. Hoje, porém, a
situação se tornou ainda mais grave: em uma era de globalização do discurso de
ódio, tecnologias locais de opressão expandem-se pelo mundo inteiro com
surpreendente rapidez.
A solidariedade internacional não deve esperar, portanto, em sono
cúmplice, as primeiras prisões arbitrárias.
SOBRE OS AUTORES
Airton Seelaender é professor de Direito Público e
História do Direito na Universidade de Brasília com doutorado na J.W.
Goethe-Universität (Frankfurt). Também é ex-Procurador do Estado e membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto de Investigaciones
de História del Derecho (Buenos Aires).
Andre Pagliarini foi professor assistente visitante de história moderna da América Latina na Brown University em 2018–19 e começará uma palestra no Dartmouth College neste outono. Atualmente, ele está preparando um livro sobre o nacionalismo brasileiro do século XX.
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