quarta-feira, 14 de julho de 2021

Feminismo Negro no Brasil: história, pautas e conquistas.

Por Silvana B. G. da Silva

 


Dentre as vertentes do Movimento Feminista, existe aquele que foca nas especificidades próprias das mulheres negras, denominado de Feminismo Negro. No Brasil, essa vertente teve início propriamente na década de 1970 com o Movimento de Mulheres Negras (MMN), a partir da percepção de que faltava uma abordagem conjunta das pautas de gênero e raça pelos movimentos sociais da época.

A luta das mulheres negras

Movimento Feminista não tinha uma abordagem interseccional e racial, não pautando, dessa forma, a dupla discriminação que as mulheres negras passam, tanto de gênero quanto de raça. Além disso, dentro do Movimento Negro, liderado por homens, não havia interesse em atuar nas lutas contra o sexismo.

 Nesse contexto, tem início o MMN e, como consequência, do Feminismo Negro no Brasil, que fez com que os demais movimentos começassem a entender sobre a importância dos recortes raciais e de gênero nas mobilizações de direitos humanos.

As mulheres negras no trabalho

No ambiente profissional, as mulheres negras ainda possuem menos garantias de direitos do que as mulheres brancas. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), as desigualdades raciais são mostradas tanto na busca por um emprego quanto nas competições sociais por espaços de poder, as quais podem estar presentes nas condições de proprietários (as) de uma empresa, posições de gestão e chefia.

No caso das mulheres negras, elas estão inseridas em um contexto das desigualdades básicas provocadas pelo racismo e pelo patriarcalismo.  Se for presenciar uma reunião de trabalho com gestores dentro de uma organização, na maioria das vezes não existe a presença de uma pessoa negra e, no caso do recorte de gênero, a situação segue mais complicada, não havendo a representação de uma mulher negra, na maioria dos casos.

Historicamente, as reivindicações pelos direitos das mulheres negras com relação ao trabalho tiveram suas primeiras manifestações na década de 1940. A imprensa negra tinha, até então, suas publicações voltadas ao universo do homem negro, abdicando de qualquer intervenção e inclusão de gênero. Foi por meio do jornal Quilombo, vida, problemas e aspirações do negro que a questão das mulheres negras foi abordada na época, em um retrato que foi o início das mobilizações de gênero e raça no Brasil.

Depois dessas primeiras manifestações na mídia impressa, ocorreram outras por meio de congressos nacionais e das empregadas domésticas. O trabalho doméstico era e ainda é a área que mais abrange mulheres, principalmente as negras, por uma questão histórica de falta de oportunidades que coloca essas mulheres em serviços operacionais. Foi a partir de todo esse processo de reconhecimento de grupos que reivindicam pautas específicas que surgiram organizações de lideranças negras femininas.

As ações sociais das mulheres negras



As lideranças negras femininas em trabalhos sociais vêm crescendo, com foco na pauta de direitos humanos direcionada às especificidades das mulheres negras. Porém, muitas vezes, esses trabalhos sociais são renegados ao segundo plano pelos homens, inclusive os negros.

O movimento feminista, que deveria destacar as diferentes formas de discriminação e preconceito vivenciadas pelas mulheres, por vezes considera que o sexismo supera o racismo e que todas passam pela mesma forma de opressão e subordinação perante os homens.

A filósofa, pesquisadora e ativista do feminismo negro Djamila Ribeiro sempre destaca a importância de ter um movimento que trate de forma específica dos preconceitos e discriminações que as mulheres negras passam. Para ela, existe uma sociedade na qual opera a supremacia branca e que o movimento feminista também acaba por fazer parte desse sistema.

A questão da não compreensão das especificidades das mulheres negras pelas ativistas das demais vertentes do feminismo ocorre desde tempos mais remotos e exemplos bem relevantes dessa situação foram a atuação das sufragistas e a luta pela emancipação financeira feminina na primeira onda do movimento feminista.

Com raras exceções, essas manifestações eram lideradas por mulheres brancas da classe média alta, as quais não pautavam as especificidades das mulheres negras, como as lutas contra o racismo e por melhores condições de trabalho, tanto no Brasil como em outros países. Faltou então, já nessa época, que todas as mulheres lutassem em conjunto, pois além do sufrágio e da independência feminina, as mulheres negras e a as mais pobres reivindicavam melhores condições de trabalho.

Angela Davis, professora universitária e filosofa estadunidense, em sua obra Mulheres, raça e classe, afirma que as organizações de mulheres que lideraram o movimento sufragista nada faziam pela pauta das população negra. Dentro desse contexto, as mulheres negras não eram incluídas nessas organizações e nem mesmo suas denúncias contra o racismo e a discriminação de gênero eram acatadas.

Segundo Davis, as feministas brancas de classe média não se importavam sequer com a classe trabalhadora branca. Dessa forma, com as manifestações das chamadas mulheres vetadas, ocorreram as divisões de grupos feministas.

No contexto atual, essa disparidade continua. As ativistas do feminismo brancocêntrico (centrado nas experiências e vidas das mulheres brancas) ainda politizam as desigualdades apenas pelas questões de gênero, sem um olhar para cada grupo de mulheres em particular.

Nesse ínterim, a antropóloga e professora Lélia Gonzalez enfatiza de forma bem relevante que “a tomada de consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial“. Assim, determina-se que a prioridade das lutas das mulheres negras é o combate ao racismo, pelo fato de haver um grupo dominante dentro do movimento feminista, que é o das mulheres brancas.

Contudo, mesmo com esses obstáculos, as mulheres negras se destacam em lutas que atingem diretamente o próprio opressor, nas diferentes formas de atuação. As ações acontecem em situações de posses de terras que lhes são de direito (como no caso das comunidades quilombolas) e uma funcional organização comunitária, principalmente nas questões relacionadas às mulheres da periferia.  Também destacam-se os trabalhos na área de educação, por meio do processo de inclusão de pessoas negras nas universidades e sua permanência nesses espaços e na área de saúde da população negra.

Diante de todo esse contexto, percebe-se a necessidade de representatividade da mulher negra dentro da sociedade e, fazendo o recorte de gênero, de uma nova visão e conscientização do que é ser racista, de se colocar no lugar do outro e de não colonizar seu lugar de fala.

A mulher negra na mídia

Na mídia atual, as mulheres negras vêm conquistando seu espaço, fato esse que pode ser observado nas telenovelas, comerciais e séries nas quais negras e negros estão começando a ser representados por personagens que fogem do papel de subordinação. Também se destaca que a cultura negra, sua religião e danças estão sendo focadas na mídia como forma de valorização da identidade do povo negro.

Porém, a mídia ainda peca na apresentação de algumas personagens negras na TV. Observa-se que atrizes e atores negros, não raramente, são ofendidos por causa de suas características físicas ou por comparar pessoas negras aos comportamentos considerados “inadequados”, ou seja, o assaltante, o usuário de drogas, o bêbado, a mulata assanhada.

Uma outra forma racista de representação das mulheres negras na mídia é a apropriação da imagem de negras consideradas belas pelos padrões da sociedade, altas e magras, colocando esse perfil como “aceitável”. Ainda nesse contexto, utiliza-se muito da hiperssexualização da mulher negra, a colocando como objeto sexual e de satisfação masculina. Nesse caso, ressalta-se que há um perfil de mulheres negras que são mais sexualizadas, as de tom de pele mais claro e de cabelo cacheado ao invés de crespo.

Muitas vezes a mídia enfatiza que as mulheres negras não fazem parte dos padrões de beleza aceitáveis pelo senso comum da sociedade, mostrando essa assimetria como algo normal, isento de uma problemática. A mídia vincula as mulheres como algo de consumo, porém, no caso das mulheres negras, a situação é ainda pior. Algumas propagandas de cerveja deixam nítida a mensagem de que a mulher negra é aquela para expor de uma forma sexual, focando a mercantilização e a estereotipação dessas mulheres.

Também há casos de racismo por parte da mídia ao ridicularizar as pessoas negras, como no caso do desrespeito às vestimentas das religiões de origem africana e do blackface, as associando aos traços físicos e comportamentos exagerados, gerando  piadas que ainda são aceitáveis como entretenimento.

Como o movimento se organiza na atualidade: a militância

Para entender como o Movimento de Mulheres Negras (MMN) se organiza na atualidade, vale  contextualizar a sociedade e a forma como ela encara as questões raciais e de gênero. Dessa forma, destaca-se que o patriarcado tem bases ideológicas semelhantes ao racismo, focando na superioridade do homem e na inferioridade da mulher. Nesse ínterim, prevalecem ideias hegemônicas de uma elite masculina branca, a qual detém a maior parte dos direitos reconhecidos e goza de uma extensa esfera de oportunidades.

Dentro das universidades, há pesquisadores que tomam para si o lugar de fala do povo negro, o que é bastante problemático. Em suas pesquisas, muitas vezes opinam sobre experiências pelas quais não passam, deixando de lado a necessidade de vivenciar determinado tipo de discriminação e de preconceito para que se possa tirar conclusões sobre a melhor forma de atuação.

Dessa forma, ressalta-se que não há como considerar apenas o conhecimento advindo do ambiente acadêmico, pois muitas vezes, na prática, as mulheres negras pautam suas ações em ambientes nos quais as pessoas apresentam diferentes formas de vulnerabilidade.

Assim, as importantes contribuições às organizações do MMN são: as experiências diárias, as lideranças comunitárias, o trabalho das escritoras, as manifestações das empregadas domésticas, a atuação de ativistas pela abolição da escravidão e pelos direitos civis e as manifestações de cantoras e compositoras de música popular.

As pautas do Movimento de Mulheres Negras se caracterizam por cinco temas fundamentais, os quais são:

·      Legado de uma história de luta;

·      Natureza interligada de gênero, raça e classe;

·      Combate aos estereótipos ou imagem de controle;

·      Atuação como mães, professoras e líderes comunitárias;

·      Política sexual.

E é dentro desses temas que se estabelece as premissas do Feminismo Negro Interseccional, vertente do movimento feminista que atua na redução das desigualdades por razões raciais e de gênero, as quais são pontos principais das condições econômicas e sociais de determinado grupo.

Novos contornos do Feminismo Negro no Brasil

O Feminismo Negro tem a experiência como base legítima para a construção do conhecimento, enfatizando o ângulo particular de visão do eu, da comunidade e da sociedade. Em sua construção há a necessidade de interpretações da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem no dia a dia e o reconhecimento de que a supressão ou aceitação condicional do conhecimento das mulheres negras está dentro de um contexto machista e racista.

A atuação e concretização da ideologia do Feminismo Negro parte da necessidade de contrapor a visão equivocada da sociedade de que a mulher negra tem uma marginalidade peculiar e estigmatizada a uma subordinação perante os demais indivíduos.

Também estimula um ponto de vista especial das mulheres negras, em uma visão distinta das  ideologias do grupo dominante branco. Ressalta-se que a luta tem origem nas reflexões e nas ações políticas.

O atual feminismo negro se configura no Brasil por meio de estudos e ações concretas em diferentes áreas de atuação. As mulheres negras se organizam em movimentos sociais, ONG’s e Conselhos por todo o país, mobilizando-se contra a prática do racismo e do sexismo como foco para a garantia de igualdade de direitos e de oportunidades. Como negras e mulheres, elas se capacitaram para não mais aceitar de forma normal a subordinação histórica e está tendo cada vez mais voz para mostrar e reivindicar contra o racismo estrutural da sociedade.

REFERÊNCIAS

Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil

Nossos feminismos revisitados

Mulher negra brasileira: um retrato

Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexismo

O Movimento Feminista Negro e suas particularidades na sociedade brasileira

Mulheres negras no Mercado de trabalho brasileiro: um balanço das políticas públicas

A invisibilidade da mulher negra na mídia

Experiências das mulheres na escravidão, pós-abolição e racismo no feminismo em Angela Davis

Mulheres em movimento




Silvana B. G. da Silva

Graduada em Design de Produto e acadêmica de Gestão Ambiental, atua profissionalmente na área de sustentabilidade e como conteudista. Em suas pesquisas acadêmicas, elabora projetos na área de tecnologia e inovação com foco social e no desenvolvimento sustentável. Como ativista, segue a vertente do Feminismo Negro e integra a Rede de Mulheres Negras do Paraná (RMN-PR).

 

https://www.politize.com.br/feminismo-negro-no-brasil/



terça-feira, 29 de junho de 2021

Na ONU, Brasil será alvo de acusação de genocídio de indígenas e negros

   Por Jamil Chade, do UOL


            Logo da ONU em sede de Nova York (Imagem: Lucas Jackson)

O governo brasileiro será alvo de denúncias nesta segunda-feira [28.06], na ONU, por genocídio tanto no que se refere à população negra como na questão indígena. Violência policial e racismo no país também estarão na agenda de um dia que promete ser tenso para a diplomacia brasileira.

A reunião para debater a questão do genocídio ocorre no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Ainda que não haja uma decisão final que represente sanções contra governos e nem ações judiciais contra líderes, o encontro é visto como uma plataforma importante para marcar uma narrativa em relação a fenômenos de violações de direitos humanos em diferentes partes do mundo.

Um dos grupos que usará o encontro para denunciar o Brasil é a Justiça Global. O objetivo da ONG é o de chamar a atenção internacional para a situação vivida pela juventude negra no país. O termo genocídio, portanto, será usado para denunciar o Brasil durante o evento.

Indígenas brasileiros também usarão o encontro para fazer uma denúncia contra o país, de forma mais específica sobre situações de grupos como os Yanomanis e os ataques sofridos nas últimas semanas.

O que os grupos querem é que a realidade brasileira entre no radar da conselheira especial do secretário-geral da ONU para a prevenção de Genocídio, Alice Wairimu Nderitu.

Ainda que governos como o do Brasil se recusem a aceitar o uso do termo genocídio para lidar com a realidade vivida no país, cresce a pressão inclusive sobre a procuradoria do Tribunal Penal Internacional para abrir um exame formal sobre a situação dos indígenas no país, além da própria crise sanitária gerada pela pandemia da covid-19.

George Floyd ameaça colocar Brasil no debate internacional

 Outra pressão sobre o Brasil virá com a publicação do inquérito conduzido pela ONU sobre a morte de George Floyd, nos EUA. Nas semanas que seguiram ao caso, uma resolução foi aprovada no Conselho das Nações Unidas, dando um mandato para que a entidade realizasse uma investigação sobre a violência policial e racismo.

Ainda que o tema se concentre principalmente nos EUA, o governo brasileiro já se prepara para ser alvo de pressão por eventuais referências à violência policial em outras partes do mundo.

Não por acaso, quando a resolução foi aprovada há um ano, o governo de Jair Bolsonaro foi um dos poucos no mundo a ficar ao lado do presidente Donald Trump e tentar esvaziar o mandato investigador.

Não apenas a ação da diplomacia brasileira ajudava o então aliado, mas Brasília também considerava que uma eventual investigação global colocaria o foco sobre a violência policial no Brasil e racismo.

O temor do governo tem explicação. Durante a mesma sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, outros dois informes apontarão para a violência policial no país. Num deles, sobre execuções sumárias, o Brasil é colocado ao lado de Venezuela, Filipinas e Nigéria.

“O maior número de mortes por policiais ocorreu no contexto das chamadas guerras contra drogas e contra atividades criminais, levando a relatoria a emitir dezenas de cartas de pedidos de ação urgente sobre assassinatos ilegais de residentes de comunidades pobres nas Filipinas, Venezuela, Brasil, Nigéria e outros”, aponta.

Num outro documento, também da ONU, é questionada a estratégia brasileira de ação contra as drogas, e o número elevado de mortes nas operações.

 

FONTE: https://www.geledes.org.br/

terça-feira, 15 de junho de 2021

Educação, grande alvo da extrema-direita

 




Por Boaventura de Sousa Santos


 Os movimentos translocais de ideias, de filosofias, de visões do mundo, de doutrinas sobre a vida e sobre a política e a sociedade são tão antigos quanto a difusão do uso dos metais, das trocas comerciais, da escrita e das primeiras civilizações urbanas a partir da Idade de Bronze 3000 ou 4000 AEC. Certamente com origem na Mesopotâmia e no que viemos a chamar o antigo Médio Oriente, essas trocas espalharam-se por toda essa vasta área da Eurásia, que mais tarde passamos a dividir entre o Ocidente (a Europa) e o Oriente (sobretudo a China e a Índia). Sabemos hoje que a Mesopotâmia foi o berço da cultura grega e que esta esteve presente no Norte da Índia nos primeiros séculos da Era Comum, muito antes de se transformar em patrimônio europeu, o que, aliás, só foi possível graças ao magnífico trabalho de tradução dos textos gregos empreendida em Bagdá pelos árabes do califado Abássida a partir de meados do século VIII, época que ficou conhecida como a Idade de Ouro do Islã.

Ao longo dos séculos, estes movimentos de ideias sempre tiveram uma origem local (às vezes, em vários locais simultaneamente) e a partir daí se difundiram e se transformaram em movimentos globais. As trocas, as influências cruzadas e as adaptações locais sempre foram uma constante dos movimentos de ideias. O protagonismo da Europa nestes movimentos é muito tardio. Só começa no século XVI e, para muitos, só nos séculos XVIII e XIX. Para me limitar aos últimos cem anos, podemos dizer que a marca europeia nas ideias políticas está presente nos seguintes movimentos globais contemporâneos: liberalismo, socialismo, direitos humanos, conservadorismo. Este último é uma contra-corrente em relação aos outros, pois enquanto estes estão informados pela tensão entre regulação social e emancipação social, donde decorrem avanços na melhoria das condições de vida para as maiorias e na inclusão social, o conservadorismo dá total prioridade à regulação social e opõe-se às ideias de maiorias e de inclusão social (daí, o seu racismo e sexismo). O conservadorismo tem três características principais: sendo um movimento global, afirma-se como contrário à globalização; sendo tão moderno quanto os outros três, apresenta-se como um regresso ao passado, uma reação que tanto pode ser moderada (direita) como extremista (extrema-direita); tem uma visão muito seletiva da soberania nacional que não o impede de ser subserviente à globalização capitalista neoliberal. Depois da Segunda Guerra Mundial o eixo desta difusão de ideias deslocou-se para o Atlântico norte, devido à supremacia dos EUA. Passou então a falar-se de eurocentrismo.

Estes quatro movimentos de ideias têm três facetas importantes: ocorrem simultaneamente, mas alternam na predominância; adaptam-se criativamente aos diferentes contextos locais; incidem nos processos educativos porque aí se formam as próximas gerações que os podem reproduzir. O período em que vivemos sinaliza uma transição para o predomínio do conservadorismo. Mas é uma transição muito incerta devido sobretudo às questões novas que a pandemia do novo coronavírus veio levantar. Elas apontam para ideias (por exemplo, novas relações com a natureza, alternativas ao desenvolvimento, relações entre o Ocidente e o Oriente) que não cabem nas versões dominantes do liberalismo, do socialismo ou dos direitos humanos. Vivemos, assim, transições de sinal contrário que por vezes dão a aparência de impasse ou de esgotamento ideológico. Hoje, detenho-me na ascendência global do conservadorismo, tanto em sua versão moderada como extremista, e nas suas recentes manifestações na área da educação no Brasil, na Índia, na Colômbia e em Portugal.

Antes da pandemia esta ascendência era particularmente visível em países tão diferentes como Reino Unido, EUA, Brasil, Índia, Filipinas, Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Bolívia, Equador, Chile, Colômbia, Israel, Guiné-Bissau, Marrocos, Egito, Camarões. A pandemia veio criar um problema inesperado para a direita: os países em que estava no poder foram aqueles em que a proteção da vida foi, em geral, mais deficiente. Os governos de direita não só se revelaram incompetentes para proteger a vida, como em alguns casos extremos (EUA e Brasil) tomaram medidas que diretamente puseram em risco a vida dos cidadãos. Apesar disso, não é claro que os próximos processos eleitorais os punam nas urnas. O risco existe e, para o prevenir, estamos a assistir ao mais preocupante desenvolvimento possível: o conservadorismo de direita está a deslizar para a extrema direita. Nos EUA, Donald Trump, perante a perspectiva de perder as eleições, está a promover campanhas maciças de desinformação, a recorrer às forças militares e a mobilizar milícias neonazis, de extrema direita, o que pode vir a pôr o país à beira de uma guerra civil, sobretudo se Trump não conseguir manipular com êxito os processos eleitorais e perder as eleições. O Brasil pode vir a seguir o mesmo caminho em 2022.

Como referi, um dos alvos privilegiados do novo (velho) conservadorismo de direita e de extrema-direita é a educação. Cito quatro casos a título de exemplo. No Brasil, podem identificar-se duas ações principais. A primeira consiste na iniciativa Escola Sem Partido, criada em 2004 com o objetivo de supostamente eliminar a “doutrinação ideológica” nas escolas. A partir de 2013, com a viragem da política brasileira para a direita (intensificação da desinformação de extrema-direita por via das fake news, perseguição político-judicial ao Partido dos Trabalhadores no âmbito da Operação Lava-Jato, especialmente contra o ex-presidente Lula da Silva, impedimento da Presidente Dilma Rousseff em 2016, eleição de Jair Bolsonaro em 2018), a Escola sem Partido intensificou a sua ação com dezenas de projetos de lei apresentados aos órgãos legislativos dos vários níveis de governação (municipal, estadual e federal) com medidas que violavam os direitos humanos fundamentais, a liberdade docente e a própria Constituição, um conjunto altamente ideológico conservador cuja inconstitucionalidade tem sido questionada por várias instâncias nacionais e internacionais.

A segunda ação consiste no ataque multifacetado às universidades públicas que envolve, nomeadamente, os cortes orçamentais e consequente subfinanciamento e o questionamento do sistema democrático da eleição dos reitores das universidades públicas federais. O governo de Jair Bolsonaro tem vindo a ignorar a eleição de reitores progressistas e mesmo a nomear reitores-interventores, tal como no tempo da ditadura que vigorou no país entre 1964 e 1985.

Na Índia, desde que Narenda Modi e o seu partido (BJP) chegaram ao poder (2014) tem havido um ataque sem precedentes à liberdade acadêmica. O sistema universitário indiano é muito diverso, composto por universidades públicas e privadas, centrais (ou federais) e estaduais, universidades para minorias, universidades religiosas, entre outras. Os ataques às universidades públicas centrais é o que tem tido mais publicidade. Intensificaram-se depois de 2014, embora tivessem ocorrido antes dirigidos pela organização juvenil do partido que agora está no poder. Professores e líderes estudantis têm sido criminalizados ao abrigo da lei contra o terrorismo e reuniões e encontros promovidos por estudantes ou professores têm sido proibidos a pretexto de que abordam temas politicamente sensíveis. À semelhança do que tem acontecido noutros países, os ataques diretos à liberdade acadêmica têm sido complementados com ataques indiretos, nomeadamente com a precarização dos contratos dos docentes, a nomeação de administradores impostos pelo Estado, a supervisão ideológica dos planos de estudo e a sistemática nomeação para posições universitárias de topo de ideólogos de direita e partidários do BJP, muitas vezes sem as necessárias qualificações acadêmicas.

Na Colômbia, o governo de direita e as organizações sociais que o apoiam têm promovido múltiplos ataques à universidade pública e ao pensamento crítico. Mediante acusações falsas, estigmatizações e montagens judicias, têm incriminado professores e estudantes sob o pretexto de pertencerem a grupos terroristas. Além disso, professores que “incomodam” só por pertencerem ao movimento universitário em defesa da educação pública têm sido ameaçados de morte. Perante a resistência da universidade pública, o governo tem vindo a asfixiá-la financeiramente, transferindo fundos para as universidades privadas. O objetivo é abrir o caminho para o capitalismo universitário de modo a que a universidade se transforme numa empresa e a suposta “doutrinação ideológica” seja substituída pelo monopólio da ideologia do mercado. E, tal como no caso português (a seguir), o conservadorismo de direita e de extrema-direita colombiano tem atacado a educação sexual nas escolas sob o pretexto de difundir a “ideologia de gênero”, acusando inclusivamente o Acordo de Paz de 2016 de a promover.

Em Portugal, o conservadorismo de extrema-direita, que sempre existiu antes e depois da Revolução do 25 de Abril de 1974, tem hoje um partido, o Chega, que congrega à sua volta todos os movimentos neonazis e nacionalistas que nunca se conformaram com a derrota que sofreram com a Revolução. A sua estratégia futura vai assentar na capitalização do descontentamento que a crise econômica e social decorrente da pandemia pode vir a provocar. O conservadorismo moderado ficou imobilizado com a pandemia porque o consenso no combate à crise sanitária foi inicialmente avassalador e o governo de esquerda mostrou eficácia e coerência nas medidas de curto prazo. Desesperado em busca de agenda que possa chamar a si os seus adeptos, encontrou-a recentemente na disputa sobre o caráter obrigatório ou optativo da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no ensino secundário. A disciplina é obrigatória. A polêmica surgiu quando os pais de dois alunos de Vila Nova de Famalicão invocaram a objeção de consciência para não deixar que os filhos frequentassem a disciplina, com o argumento de que os temas da disciplina eram uma responsabilidade da família. Os alunos reprovaram por faltas, foram admitidos pela escola a transitar de nível, o Ministério de Educação recusou o procedimento e exigiu que os alunos frequentassem um plano de recuperação, plano que os pais rejeitaram, avançando com uma providência cautelar que foi aceite pelo tribunal. Está pendente a decisão.

Entretanto, personalidades de direita, tanto secular como religiosa, publicaram um manifesto em favor do caráter facultativo da disciplina. Não podiam escolher um alvo menos adequado e um tempo menos oportuno. Vivemos em pleno período de crise sanitária que nos tem vindo a ensinar a necessidade de consenso político nas questões de que depende o nosso futuro e o das gerações que nos sucedem. Educar para a cidadania, em todas as suas expressões, é hoje mais urgente que nunca. Neste contexto, afirmar liberdades que possam desestabilizar a educação dos jovens e questionar ainda mais as suas expectativas assume uma particular gravidade. Todos se recordam das manifestações nos EUA das forças de direita e de extrema-direita contra o uso das máscaras e o distanciamento sanitário. A repulsa foi geral. No caso da educação sexual (porque é esse o cerne do incômodo) não está em causa a desobediência a orientações da OMS; está em causa a violação de tratados internacionais de direitos humanos que Portugal ratificou. Recordemos que o princípio da igualdade de gênero e do respeito pela diversidade sexual está hoje internacionalmente reconhecido, e é dele que decorre a exigência da educação sexual nas escolas, o que, aliás, sucede em toda a Europa. E para surpresa dos conservadores portugueses, os estudos revelam que os pais norte-americanos, qualquer que seja a sua orientação política, são, em esmagadora maioria, a favor da educação sexual na escola. Entre outras motivações, muitos deles preferem que seja a escola a tratar de temas que, por mais importantes, podem ser incômodos quando tratados na intimidade familiar. Outros temem que, na ausência da escola, as redes sociais ocupem esse espaço sem qualquer controlo.

A polêmica que se levantou na sociedade portuguesa mostra até que ponto o Portugal profundo continua sexista (e certamente também racista, já que os dois preconceitos vão juntos, como vários casos recentes mostram). Há cinquenta anos as escolas ensinavam que as mulheres deviam obediência aos maridos, que não podiam exercer certos cargos por carecerem de capacidade física ou mental e que os homossexuais eram doentes (quando não criminosos). As transformações políticas, por que passamos, e os movimentos sociais que se lhes seguiram em favor dos direitos sexuais, e todo o movimento global pelos direitos humanos, foram sedimentando numa nova cultura de paz e de convivência, de reconhecimento da diferença e de respeito pela diversidade. Essa cultura sobrepõe-se a séculos de preconceitos – e a séculos de privilégios em que tais preconceitos se traduziram e continuam a traduzir. A inércia social que isso causa aflora a cada momento, como no caso presente. Daí a necessidade de a escola se envolver ativamente na aprendizagem de uma cultura democrática, não excludente, promotora dos direitos humanos. E certamente que as escolas o fazem de uma maneira muito mais confiável que as redes sociais.

À luz de qualquer dos três movimentos globais de ideias de matriz europeia (liberalismo, socialismo, direitos humanos), esta iniciativa do conservadorismo português significa uma violação dos objetivos de inclusão social igualitária que dominaram nos últimos cem anos e, em Portugal, apenas nos últimos cinquenta anos. Devido a esta particularidade portuguesa, pôr em causa a vigência plena da educação para a cidadania é particularmente grave. É que, por detrás da convicção de conservadores da direita moderada, esconde-se a extrema-direita, provavelmente com o objetivo de se sobrepor a ela na polarização que vai explorar a todo o custo. A presença da hierarquia da Igreja Católica, em aberta desobediência ao Papa Francisco, é um sinal adicional de preocupação. Não esquecemos ainda que a hierarquia da Igreja Católica portuguesa defendeu o fascismo (e o colonialismo) até aos seus últimos estertores. E, obviamente, é particularmente importante que os tribunais não abdiquem de fazer valer os direitos da igualdade sexual e da orientação sexual consignados nas leis e na Constituição. Lembremo-nos de que nesta matéria houve decisões recentes altamente problemáticas e justificadas com fundamentos ilegais.

Não é optativo retroceder. Os retrocessos na educação são sempre um péssimo augúrio para a sociedade. Se a igualdade sexual fosse ideologia de gênero, a igualdade entre raças seria ideologia racial e a luta contra a pobreza seria ideologia classista. E, em última instância, a luta contra o fascismo seria ideologia… democrática.

 

FONTE: Controvérsia


domingo, 6 de junho de 2021

A igreja e o novo sujeito social




Por Marcio Pochmann


O início do século 21 trouxe consigo questões de sobrevivência humana próprias do passado recente. Para além da problemática nuclear herdada da segunda Guerra Mundial, a insustentabilidade ambiental ganhou evidência a partir dos anos 1970.

Com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo e o estudo Limites do Crescimento, do Clube de Roma, o tema do desenvolvimento passou a ser percebido como um sonho de difícil realização ao conjunto das nações. Isso parece ter ficado evidente no primordial livro de Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico, publicado em 1974.

Ao mesmo tempo, os povos sofreram modificações substanciais resultantes da passagem do antigo e longevo agrarismo à condição de sociedades urbanas. A mesma ONU que contabiliza atualmente mais de 55% da população mundial vivendo em áreas urbanas, projeta para 2050 quase 4/5 dos habitantes do planeta morando nas cidades.

Simultaneamente, não se pode esquecer a marcha econômica que desloca o sistema produtivo industrial do Ocidente para o Oriente. Com a Nova Rota da Seda protagonizada pela China, versão bem mais grandiosa que o Plano Marshall estadunidense que reconstruiu a Europa no segundo pós-guerra, a antiga Eurásia ressurge em novas bases modernizantes, afirmando-se como o principal centro dinâmico do mundo.

É nesse contexto que a Igreja Católica tem procurado se reposicionar neste começo do século 21. Enquanto instituição milenar que emergiu em pleno domínio do antigo império romano, fundado em profundas tradições assentadas nas sociedades agrárias, a igreja tem se disposto a atualizar sua doutrina social de tempos em tempos, sobretudo diante da constatação do aparecimento de novos sujeitos sociais.

Foi assim no final do século 19, quando ficou evidente que o antigo centro econômico agrário do mundo, comandado por hindus e chineses havia sido derrotado pelo império inglês, deslocando o poder da Eurásia para a Europa. Em 1891, o papa Leão XIII lançou a encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas), que reposicionou a doutrina social da igreja em relação à emergência de novos que substituíam aqueles pertencentes ao velho mundo agrário (servos, escravos, camponeses e outros).

Numa época em que a globalização sequer era imaginada, a encíclica inovou com importante abordagem a respeito da questão social que resultava da expansão selvagem do liberalismo no capitalismo urbano e industrial. O posicionamento da igreja sobre as precárias condições urbanas de vida e trabalho dos operários reorientou o mundo, sobretudo o Ocidente, frente à natureza desregulada do capitalismo a explorar a sobrevivência humana.

Os movimentos regulatórios da exploração capitalista que se expandiram ao longo do século 20 trouxeram inegavelmente consigo a força da doutrina social da igreja. Tanto na criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, como nos diversos sistemas de regulação pública do trabalho adotados por governos nacionais, a questão do novo sujeito social urbano e industrial trazido pela Rerum Novarum esteve presente em maior ou menor medida.

Nos dias de hoje, o papa Francisco tem protagonizado nova geração de encíclicas que dialogam com a emergência de sujeitos sociais resultantes das principais transformações do capitalismo. A globalização neoliberal conduzida por grandes corporações transnacionais privadas, que esvaziam o poder dos governos nacionais, e o deslocamento da centralidade do Ocidente para o Oriente encontram no papa Francisco a defesa de uma economia política não excludente.

Após 130 anos da Rerum Novarum de Leão XIII, a encíclica Fratelli tutti (Todos irmãos) do papa Francisco enuncia outro olhar abrangente sobre a transição da Era Industrial para a Digital, acoplada ao sujeito da sociedade de serviços. Não mais o predomínio do trabalho material constituído pelo camponês do antigo agrarismo ou pelo operário da outrora sociedade urbana e industrial, mas a intensa expansão do labor imaterial a hegemonizar a condição humana deste início do século 21.

O papa Francisco parece inovar também na perspectiva humanista de avançar da visão iluminista ocidental de superioridade da razão sobre a emoção para incorporar outros saberes não acadêmicos provenientes das comunidades ancestrais e dos povos negros. Ao procurar responder aos enormes dilemas contemporâneos da humanidade, a encíclica Fratelli tutti de 2020 atualiza a abordagem assentada nos desafios da vida cotidiana imposta pela realidade imediata.

Lança, assim, outras luzes de esperança renovada para iluminar o caminho de um mundo melhor. Para tanto, a expectativa se volta aos sujeitos do trabalho imaterial que em plena Era Digital da sociedade de serviços parecem, cada vez mais, não ser economicamente viáveis no capitalismo neoliberal.

Fonte da matéria: https://terapiapolitica.com.br/2021/03/14/a-igreja-e-o-novo-sujeito-social/


sábado, 29 de maio de 2021

O mapa-múndi das mulheres no poder


Os países onde elas governam ou estão na vice-presidência. Quais sofreram golpes. Presença delas cresceu nos últimos 20 anos, em todos os continentes. Destaque para as líderes de Finlândia, Nova Zelândia e Etiópia na combate à pandemia

 


Baixe o mapa em alta resolução aqui


Por Igor Venceslau, na coluna Outras Cartografias

 

Embora não seja nenhuma novidade, mulheres sentadas nas cadeiras de governo dos países ainda são minoria. O que talvez seja novidade deste século é a sua ocorrência cada vez mais frequente – e em todos os continentes. Se nos tempos de Indira Gandhi e Isabel Perón podiam ser contatas nos dedos de uma mão, agora são eleitas em todas as latitudes e culturas, de ocidentais a orientais, de cristãs a muçulmanas e budistas.

Talvez a mais influente e conhecida chefe de governo atualmente seja a chanceler alemã Angela Merkel. No cargo desde 2006, é impossível que passe desapercebida como única mulher nas tão divulgadas fotos da cúpula do G-7. Mas destoa também por sua qualificação como cientista de carreira, doutorada com uma tese em química quântica. É também do caso de Tsai Ing-wen, acadêmica de direito e presidenta do Taiwan. O fato é que definitivamente as titulares como presidenta, primeira-ministra ou similar não estão restritas apenas aos países escandinavos, onde somente a Suécia não é governada por uma mulher.

Também a eleição de mulheres não significa necessariamente governos mais progressistas, dada a variedade dos espectros políticos que elas representam. Sua chegada às cadeiras executivas obviamente não está isenta de contradições, conflitos e disputas as mais variadas. Por outro lado, muitas delas foram destaque quando o assunto é gestão da pandemia. Quem não ouviu falar na finlandesa Sanna Marin ou na neozelandesa Jacinda Ardern nos últimos meses? Do mesmo modo, a presidenta etíope Sahle-Work Zewde, que acumulou anos de experiência como diretora da ONU para a União Africana, deu uma aula de direitos humanos ao realizar a soltura de presos por conta da pandemia, uma medida que não a isentou de controvérsias.

Igualmente digno de atenção vem sendo o crescimento constante no número de mulheres compondo chapas presidenciais como vice, em muitos casos eleitas. Embora a grande imprensa tenha chamado bastante atenção para a eleição de Kamala Harris nos EUA, num contexto marcado pelo machismo escancarado de Trump e os protestos do Black Lives Matter, essa já era uma tendência. Aquele país ensaiou uma presidenta em 2016 quando Hillary Clinton disputou a eleição contra Trump.

A vice-presidenta é um título que sacudiu as últimas eleições na América Latina, vem sendo recorrente na África e em crescimento na Ásia. Talvez o nome que mais soa aqui no nosso continente seja mesmo o de Cristina Kirchner, por ter sido presidenta e também por sua liderança política. Mas são diversas as coalizões políticas e conjunturas em vários países, todas tendo em comum a presença de mulheres: desde a primeira vice-presidenta na Colômbia, Marta Lúcia Ramírez, que foi ministra no governo Uribe; passando pela equatoriana María Alejandra Muñoz, política de esquerda eleita pelo congresso como quarta pessoa a ocupar a cadeira da vice-presidência do governo Lenín Moreno; até Epsy Barr, primeira mulher e pessoa negra a ocupar a cadeira na Costa Rica; ou mesmo Rosario Murillo, que é ao mesmo tempo primeira-dama e vice-presidenta da Nicarágua. Em que medida esses são resultados da conquista efetiva de direitos ou representam a cooptação de uma pauta pelo discurso político-eleitoral? A eleição de mulheres deveria ser apoiada, mesmo quando seu programa de governo é conversador e neoliberal?

A respeito desse tema, a situação na América Latina já foi bem mais animadora. A última década foi marcada com três das maiores economias do continente governadas por mulheres – na Argentina de Cristina Kirchner, no Chile de Michelle Bachelet e no Brasil de Dilma Rousseff, o que parecia concretizar uma mudança que foi largamente combatida em todos os capítulos que já sabemos. Agora há uma tentativa de recuperar algumas posições, dentro dos limites de uma nova conjuntura.

O que diferencia os três nomes anteriores é justamente aquilo está assinalado no mapa como países que tiveram uma titular (presidenta ou primeira-ministra) impedida de concluir o mandato de governo. Esse impedimento é traumático para os países que sofreram, mas também para o avanço recente das mulheres nos governos. O golpe de 2016 contra Dilma Rousseff demonstrou que esse é um movimento muito longe de ser linear. Agora o golpe militar de fevereiro deste ano no Mianmar, depondo a prêmio nobel e líder política Aung San Suu Kyi do cargo de conselheira de Estado, convida novamente à inadiável imbricação das lutas do feminismo, do anti-autoritarismo e do anti-neoliberalismo.


terça-feira, 11 de maio de 2021

O avanço do bolsonarismo nas universidades

UMA ENTREVISTA COM AIRTON SEELAENDER

 

Desde que assumiu, Bolsonaro nomeou 16 reitores que não foram eleitos e intimidou acadêmicos críticos ao desastre pandêmico. Para resistir a esses ataques e a perseguição de fanáticos da extrema direita na academia, conversamos com Airton Seelaender, professor da UNB especialista em colaboracionismo jurídico em regimes autoritários.

 

Hitler e Mussolini não perderam tempo alterando a Constituição de Weimar e o Estatuto Albertino para suprimir a liberdade de cátedra. Foto de Lucas Tavares / Zimel Press.


Entrevista por Andre Pagliarini

Nos últimos anos a democracia universitária acabou. Desde que assumiu, ao longo de seu mandato, Bolsonaro nomeou 16 reitores que não foram eleitos pela comunidade acadêmica.  Pela Constituição, desde 1996, as instituições de ensino federal encaminham uma lista tríplice de três candidatos à reitoria mais votados internamente ao presidente da República. Em live no final do ano passado, Bolsonaro afirmou que não quer “interferir politicamente em lugar nenhum”, mas que verifica os nomes das listas encaminhadas pelas universidades e detecta candidatos “militantes”.

Mas não é só a democracia universitária que o bolsonarismo está destruindo. O ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, foi alvo de intimidação por meio de um Termo de Ajuste de Conduta em razão a suposta “manifestação desrespeitosa direcionada ao presidente” num debate online. Hallal entrou na mira de Bolsonaro porque vem conduzindo uma pesquisa sobre a inexpressiva atuação do governo diante da pandemia do coronavírus que já ceifou a vida de mais de 409 mil brasileiros. 

Para entender mais as origens autoritárias dessas ações, André Pagliarini, colaborador da Jacobin, conversou com Airton Seelaender, professor de Direito Público e História do Direito na Universidade de Brasília, que quando fazia sua pós-graduação em Frankfurt, na Alemanha, teve contato com os trabalhos dos juristas do nazismo. Seelaender lembra que Hitler e Mussolini não perderam tempo alterando o Estatuto Albertino para suprimir a liberdade de cátedra. E, antes do nazismo lançar sua blitzkrieg contra as cátedras, já usava jovens nazistas para intimidar professores judeus, liberais e socialistas.

Para Seelaender, essas atitudes do governo Bolsonaro somadas com o denuncismo ideológico da extrema direita e a infiltração de fanáticos em órgãos estatais estão jogando as universidades brasileiras num obscurantismo autoritário nunca visto antes.

Fale um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e profissional. Como que você veio a estudar o direito contemporâneo? O que te interessou nessa área?

Nos Anos 80, a manipulação do povo brasileiro pelo oligopólio privado da mídia era brutal. Alguns meios de comunicação seguiam colaborando com o então decadente regime ditatorial – inclusive mentindo abertamente, como no caso da tentativa de fraude eleitoral nas eleições de 1982 no Rio de Janeiro. Uma gigantesca manifestação contra a ditadura, em que eu estivera pessoalmente, foi apresentada na TV como um “show” de comemoração do aniversário de São Paulo.

Quando entrei na Universidade de São Paulo, em 1986, comecei a lidar mais diretamente com o direito dos governados à informação – alguns dos primeiros artigos publicados sobre isso no Brasil são os que fiz quando era estudante. Passei, depois, a escrever sobre o regime jurídico da televisão, tentando encontrar formas de fazê-la servir melhor à democracia. Outros temas também relacionados à liberdade de informação – como o controle dos trabalhadores sobre seus próprios dados pessoais – também vieram a me interessar.

Naquela época distante, era às vezes difícil ingressar na pós-graduação de algumas faculdades brasileiras de direito sem ter protetores e conexões. Tentei, então, ir para a Alemanha, onde tive a sorte de ser aceito como orientando por um notável historiador do direito, Michael Stolleis. A ele, a Heinz Mohnhaupt e ao historiador português António Hespanha devo o melhor de minha formação.

Ao retornar, trabalhei por vários anos na Procuradoria do Estado. Era uma instituição séria, onde pude ver como as garantias dadas aos servidores públicos eram essenciais para impedir que a coletividade fosse saqueada.

Em 2006, troquei a Procuradoria pela carreira de professor, que pagava bem menos e era aqui bem menos respeitada. Acharam que eu tinha enlouquecido. Mas não me arrependo, pois o que gosto mesmo é de ensinar e pesquisar. Passei a lecionar História do Direito e Direito Público. 

Graças a Deus, já deixei de ensinar Direito Constitucional. Livrei-me, assim, do constrangedor dever de comparar a nossa Constituição democrática com a atuação do Ministério Público e de outras instituições sob o bolsonarismo.

Você já tratou em termos acadêmicos da questão dos juristas em regimes autoritários. Em um texto de 2017, você diz que o STF é “hoje absurdamente heroicizado como centro de resistência cívico-democrática” na ditadura. Como você vê esse assunto, tanto em termos históricos como atuais?

Enquanto estudava em Frankfurt a teoria legislativa do Iluminismo, tomei contato com os trabalhos de Stolleis, Müller e Rüthers sobre os juristas do nazismo. Comecei a ler sobre juízes e professores de Direito em Vichy, na Itália fascista e em Portugal à época de Salazar. Também queria entender, é claro, o que houve aqui no Estado Novo e sob a ditadura militar.

Quando comecei a tratar disso publicamente, o tema era tabu no Brasil. Muitos dos juristas da ditadura estavam vivos e o debate era visto como um risco aos “atestados de pedigree acadêmico” de alguns discípulos. Temendo que um juiz apreendesse um livro que co-editávamos, um colega me implorou para tirar do meu texto “Juristas e Ditaduras” longas passagens sobre juristas brasileiros que haviam apoiado o regime militar. Um destes chegou a fazer uma palestra, em uma faculdade, uma semana depois de outra que eu lá fizera sobre ele.

Na Europa e na América Latina, compreender ditaduras pressupõe compreender, também, os juristas que ajudaram a legitimá-las e a fazê-las funcionar. É necessário estudar, a fundo, o fenômeno do colaboracionismo jurídico.

Você me pergunta, também, sobre o STF. E já lhe adianto que a história dele é bem mais complexa do que o tribunal costuma dar a entender.

O STF adora elogiar-se a si mesmo. E, como o tribunal afeta a distribuição social do prestígio, da riqueza e do poder, nunca faltará gente para glorificá-lo como a vanguarda da democracia. Mas tais elogios não nos explicam por que um tribunal que tinha o dever de defender a Constituição democrática de 1946 veio a receber oficialmente, como chefe de Estado legítimo, um militar que a havia violado. Os bardos da toga tampouco nos explicam por que ali se exaltou, no passado, o Estado Novo e até Benito Mussolini. 

Se a ala mais delirante de nossa extrema direita conseguisse, no futuro, transformar o Brasil em uma repugnante ditadura cheia de assassinos e torturadores, decerto não faltaria quem, décadas depois, escrevesse obras exaltando os ministros dos tribunais superiores que se houvessem revelado mais dignos e mais corajosos na defesa da democracia nada daquilo teria acontecido. Mas o que se poderia escrever, então, sobre os outros? Ou sobre os juízes e procuradores que houvessem chegado até a baixeza de normalizar a passagem para o novo regime? 

Como você descreveria o clima político e social no Brasil hoje?

Professores de Direito não são as pessoas mais habilitadas para analisar a situação social do país. Quem melhor a conhece é quem hoje afunda na miséria: o cidadão médio que teve seus direitos trabalhistas destroçados, em nome de um progresso econômico que depois não veio. 

Quanto ao debate político atual, só quero registrar que é marcado pela brutalidade da linguagem, pelo culto à personalidade e pelo descaso geral e absoluto com o sofrimento humano, com o enorme sofrimento das pessoas. 

Existe censura hoje nas universidades brasileiras?

No Brasil de hoje, a onda de denuncismo ideológico e a infiltração de fanáticos em órgãos estatais têm gerado não só a consternação das pessoas decentes, mas também medo nos setores mais expostos a perseguições injustas – como é o caso dos professores universitários. 

A Constituição brasileira proíbe restringir a liberdade de cátedra. Decisões do STF proíbem restringir a liberdade de cátedra. Apesar disso, tal liberdade pode desmoronar em poucos dias, se o medo de exercê-la vier a se espalhar. Pouco ou nada restará dela, na prática, se os professores de Economia, de Física, de Medicina ou de Sociologia passarem a temer inquéritos policiais, processos criminais e apurações administrativas sobre o teor de suas pesquisas, aulas e conferências. 

No mundo todo, os ditadores sabem disso. A ferramenta das ditaduras é o medo. Hitler e Mussolini não perderam tempo alterando a Constituição de Weimar e o Estatuto Albertino para suprimir a liberdade de cátedra: squadristi e funcionários fanatizados cumpriam tal tarefa mais diretamente. Basta infernizar e intimidar um pequeno percentual de professores, para que logo o medo impere e a autocensura se imponha. Disso para o denuncismo sistemático e o “Heil Hitler!” em sala de aula, é só um passo. 

Felizmente não há “Reich de Mil Anos” que dure quinze e o Brasil não é o “Terceiro Reich”. Mas a estreita correlação entre medo e censura não derrete no calor dos trópicos. E é gritantemente óbvia.

Por isso mesmo, se no futuro algum Reitor, Procurador da República, Ministro da Educação, autoridade policial ou servidor público vier a produzir ou distribuir documentos oficiais ofensivos à liberdade constitucional de ensino, ele não poderá alegar que não imaginava qual seria o resultado. Ele estaria então assumindo, conscientemente, o risco de gerar o medo como fenômeno social. E estaria, conscientemente, assumindo o risco de servir à destruição da ordem constitucional democrática

Como resistir ao silenciamento e à intimidação?

Enquanto a Constituição democrática estiver em vigor e houver meios legais para conter quem tente silenciar as universidades, estas devem abertamente recusar obediência a “recomendações” e comandos ofensivos à liberdade de cátedra. Deve-se, pois, simplesmente desobedecer quem, de modo óbvio e acintoso, violar a Constituição – da mesma forma que se desobedeceria, por exemplo, um prefeito neonazista que proibisse crianças negras e judias de brincarem em praças públicas.

Os professores que se sentirem intimidados ou censurados não devem se acovardar. Não devem se limitar a ficar resmungando com familiares e colegas. Devem, isso sim, comunicar o ocorrido aos sindicatos, partidos, jornais. Devem entregar a Declaração da Faculdade de Direito da UNB a um advogado, pedindo que este tome as medidas legais para a sua defesa (mandado de segurança, por vezes habeas corpus) ou para responsabilizar pessoalmente os inimigos da liberdade de cátedra.

As autoridades universitárias sempre devem, também, oficiar o Ministério Público, quando houver indícios claros de que o ato inconstitucional de censura teve motivação política situacionista. Nesses casos, pode mesmo haver, em tese, crime de prevaricação ou de abuso de poder.

Também é de fundamental importância impedir que professores sejam agredidos, ofendidos ou ameaçados por grupos de alunos de extrema direita. Antes do nazismo lançar sua Blitzkrieg contra as cátedras, já usava jovens nazistas para promover a violência e a intimidação de professores judeus, liberais e socialistas.

A base da democracia, porém, é o povo – e a ele e a seus representantes devem também os professores pedir socorro. Sem cidadão ativo, nada funciona. O mantra conformista “as instituições estão funcionando” é uma dupla tolice: elas não funcionam bem longe do olhar do povo e, onde funcionam mesmo bem, a ninguém ocorre pronunciar tal frase.     

As faculdades de direito têm um papel diferenciado no debate sobre a liberdade de ensino?

As faculdades de direito não são Olimpos, não têm precedência face a outras faculdades. Elas apenas estão mais tecnicamente preparadas do que as demais para desmascarar a opressão disfarçada de legalidade.

Pensemos, de forma meramente abstrata, em um imaginário politiqueiro de extrema direita que usasse e abusasse de uma alta posição jurídica no aparato estatal para dar vazão a seu fanatismo descontrolado. Suponhamos, também só teoricamente, que ele tivesse por ídolo um astrólogo e desejasse, por isso mesmo, forçar todos os professores de Astronomia a ensinarem o Zodíaco em universidades públicas. Ora, não haveria astrônomo que não tremesse, recebendo esse comando despótico e absurdo em um papel timbrado, cheio de solenes referências a artigos de leis.

Se a mesma autoridade imaginária exigisse de uma faculdade de direito que ensinasse “Astrologia Judiciária” (baboseira que já teve fãs no passado), o resultado seria, no entanto, muito diferente. Após gargalhar em uníssono, a faculdade tomaria providências para que tal autoridade enfim perdesse seu cargo e fosse processada criminalmente.

Astrônomos, antropólogos, economistas, biólogos: todos se sentirão mais seguros, se as faculdades de direito sempre impedirem, no futuro, que o autoritarismo, ogro horroroso, ouse passar por fadinha da legalidade.   

Qual recado você daria aos estudiosos, acadêmicos, professores e educadores ao redor do mundo? Por que os acontecimentos do Brasil importam para além da América Latina?

Apelo aos professores, estudiosos e educadores do mundo todo para que olhem o Brasil. Para que não abandonem seus colegas brasileiros. Nós, que já lutamos para sobreviver a um stalingrado sanitário, não merecemos ser impedidos de pensar, pesquisar, debater e ensinar em liberdade.

Toda vez, no passado, em que a liberdade foi atacada no Brasil, logo o problema veio a contaminar o restante da América Latina. Hoje, porém, a situação se tornou ainda mais grave: em uma era de globalização do discurso de ódio, tecnologias locais de opressão expandem-se pelo mundo inteiro com surpreendente rapidez.    

A solidariedade internacional não deve esperar, portanto, em sono cúmplice, as primeiras prisões arbitrárias.

 

SOBRE OS AUTORES

Airton Seelaender é professor de Direito Público e História do Direito na Universidade de Brasília com doutorado na J.W. Goethe-Universität (Frankfurt). Também é ex-Procurador do Estado e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto de Investigaciones de História del Derecho (Buenos Aires).

Andre Pagliarini foi professor assistente visitante de história moderna da América Latina na Brown University em 2018–19 e começará uma palestra no Dartmouth College neste outono. Atualmente, ele está preparando um livro sobre o nacionalismo brasileiro do século XX.

 

FONTE: Jacobin Brasil


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